8.7.11

ENTREVISTA NO CARAMUÊ

Entrevista com Márcio Meirelles – Parte 1


O diretor teatral, artista plástico e escritor, Márcio Meireles falou em entrevista ao Caramurê de maneira franca e aberta. O ex- Secretário de Cultura do Estado, disse que não tinha mágoas e, com 40 anos de vida pública, tem a sensação de dever cumprido. Mostrou-se bem à vontade ao comentar questões sobre o período em que esteve à frente da Secretaria. Também falou sobre o desenvolvimento da cultura no estado e de como lidou e como vem lidando com as críticas.

FERNANDO: Você começou sua carreira como artista plástico e participou do movimento Etsedron. O que lhe levou ao teatro?

MÁRCIO MEIRELLES (MM): Foram as próprias artes visuais, as performances, as ampliações, as vanguardas do início do século XX, o estudo, a curiosidade. Por outro lado, na minha formação há também um fato familiar. Jurema Pena, estudou com minha mãe e com minha tia no colegial, e também foi colega da minha tia na Faculdade de Direito. Ela era muito próxima da família e estava sempre na minha casa, e eu acompanhava isso. Então quando eu tinha uns 11 a 12 anos, minha mãe a ajudou a produzir o espetáculo, e eu acompanhava os ensaios, via os camarins. A partir daí fui me aproximando…
FERNANDO: Você não sente vontade de fazer nada voltado ás artes plásticas?
MÁRCIO MEIRELLES: Às vezes eu faço. Durante muito tempo eu fazia as duas coisas. Toda parte gráfica, alguns projetos do Bando ou de outros espetáculos, eu acabava fazendo. Em 1996, eu voltei a pintar. Mas foi uma coisa abstrata, algo que nunca fiz, eu sempre fui figurativo, sempre gostei da figura humana. Então resolvi fazer algo abstrato, não sei o porquê…
UIARA NANA: Você não pensa em expor esses trabalhos?
MM: No próximo ano eu faço 40 anos de teatro, ou seja, de vida pública como artista, porque quando eu comecei eu continuei trabalhando com artes visuais e fiz algumas exposições. A minha primeira exposição foi em 1975 e eu já fazia teatro. São 40 anos da minha vida como artista e eu estou querendo juntar esses fragmentos de mim, esses pedaços, porque tem uma coerência, tem uma linha que condiz tudo isso, com esse lado gestor, artista, pensador e escritor.
FERNANDO: O espírito do Vila do tempo do Teatro dos Novos, é o mesmo espírito do Vila de hoje?
MM: Não é exatamente o mesmo, porque o tempo mudou, mas é o mesmo impulso, é a mesma inspiração. Quando nós viemos para o Vila Velha, em 1994, eu vim muito imbuído nesse sentido de recuperar a história do teatro. Quando João morreu em 1979, o teatro ficou a deriva, não por culpa de ninguém. Era porque não havia um projeto político, como João tinha e conduziu o tempo inteiro. Então, nós viemos em 1994 com a missão de recuperar, formar e revitalizar o teatro. A inspiração era o que eles fizeram, era a origem, eu sempre parto das raízes.
Eu lembrava muito das coisas que vi, que sabia e fui tentando conduzir tudo no sentido de fazer algo coletivo, que tivesse haver com as origens, com inovação, com experimentação, com pesquisa, mas também com o popular. Nessa época, eu já trabalhava com o Bando, e toda essa proposta tem muito haver com João Augusto. Essa coisa do não ator que se transforma em ator e que gera uma modificação que o próprio teatro propõe e faz quando você tem um grupo como o do Bando.

“(…)o tempo mudou, mas é o mesmo impulso, é a mesma inspiração. Quando nós viemos para o Vila Velha, em 1994, eu vim muito imbuído nesse sentido de recuperar a história do teatro (…)”
UIARA NANA: Como surgiu o Bando de Teatro Olodum?
MM: O Bando vem de uma ansiedade minha, como artista, de perceber uma distância entre o público e o palco na Bahia. Eu trabalhava muito com peças clássicas, com textos clássicos, numa leitura contemporânea, numa leitura visual. Não me queixo de público; Avelãs y Avestruz, grupo que comemora agora 35 anos de atuação, teve a sua primeira estreia no Pelourinho, no Teatro do Senac, mas sempre teve público. Ele faz parte de um momento do teatro baiano, de revitalização, quando surgiu Guerreiro, Marfus, éramos todos da mesma geração. Esse foi um momento bom do teatro, foi um período muito criativo.
Mas eu sentia a ausência do negro no palco, das questões do povo negro, de uma dramaturgia negra numa cidade negra como Salvador. Comecei a pensar muito sobre essa questão, dos teatros e das diversas culturas terem surgido dos rituais, da tragédia grega, do ritual de Dionísio, do Teatro Nô, do Kathakali, os autos medievais que vem de uma série de rituais cristãos. Eu sempre me perguntava, por que os ritos africanos, tão ricos dramaturgicamente e cenotécnicamente, ainda não tinham ido parar no teatro. Agora eu percebo que talvez a força do rito, ainda seja muito grande e não tenha essa necessidade de transformação, dessa mundanização.
Então comecei a pesquisar sobre isso, e João Jorge, sabia que eu estava nessa direção, e me propôs que fizéssemos juntos o projeto de um grupo de teatro dentro do Olodum. Depois começamos essa parte de ver quem seriam os atores desse grupo. Seriam atores consagrados, mas negros? Ou simplesmente atores? Na dúvida disponibilizamos a participação para todos os que tivessem interesse, e a seleção foi feita a partir do desejo daquelas pessoas de falarem coisas, da capacidade que percebíamos em cada um de doação, a vontade de estar ali e do compromisso que as pessoas tinham com aquelas questões. Havia também a questão da identificação com o tema, com o que se discutia, com o que se falava, e com a cor da pele, porque isso no mundo e no Brasil, conta.
Começamos a trabalhar com os atores que vinham de grupos amadores, de várias partes da cidade, com formas diferentes de representar, e o fascinante era a habilidade que eles tinham para representar situações e personagens. De trazer para vida real personagens, modos de falar e de agir para a sala de ensaios. Isso me interessava muito, eu preferia harmonizar isso, a fazer pacotes prontos.

“O Bando vem de uma ansiedade minha, como artista, de perceber uma distância entre o público e o palco na Bahia”.

FERNANDO: O “Ó pai ó”, começou aqui, você dirigiu, depois ele virou filme e minissérie. Como você viu essas modificações para o projeto original?

MM: O filme é mais próximo do processo original. A obra é um projeto de Monique, e que inicialmente foi Caetano quem levantou essa bola de transformar “Ó pai ó” em filme. Ele chegou a escrever o roteiro e era uma produtora americana que faria o filme, mas eu não sei bem por que, a ideia não foi adiante. Depois disso, Caetano passou o projeto para Monique, que tinha feito Jenipapo com os atores do Bando e que gostava do “Ó pai ó”. Mas não teve continuidade, por conta de outros trabalhos que ela estava desenvolvendo. Foi então que, Lázaro Ramos retomou o projeto. Mas era um trabalho de Monique, eu não interferi em nada. Eu só acompanhei o processo, mas muito pouco.

Mais o que de fato existe nessa obra, é que ela parte de uma indignação comum. Por uma situação injusta, perversa e tem a mesma carga. Eu gosto desse filme e gosto da adaptação e como se fosse uma tradução para outra linguagem.
FERNANDO: E a minissérie?
MM: A minissérie é um projeto da Globo. Eu acho um mérito termos um grupo de atores negros, nordestinos e baianos fazendo uma série em rede nacional como protagonistas. Isso já vale, porque é um fato político e é uma conquista. Não acho que seja um desserviço ao grupo e nem ao espetáculo original, porque tem sido um referencial para muitos jovens negros, e esse é um dos motivos da existência do grupo, a afirmação positiva e política do papel do negro na sociedade. Fizemos muitas reuniões depois da primeira temporada, com representantes do movimento negro, com pensadores, lideranças comunitárias e as respostas foram bastante positivas, eu tinha medo das pessoas reagirem negativamente, porque de certa forma, o seriado ameniza tudo e eu não queria fazer piada gratuita com uma situação que é tão grave, como a dos moradores do Pelourinho, que é uma comunidade emblemática.
“(…) Eu acho um mérito termos um grupo de atores negros, nordestinos e baianos fazendo uma série em rede nacional como protagonistas (…)”
FERNANDO: No Pelourinho, as pessoas vivem em meio a essa folclorização da Bahia e a realidade concreta…

MM: E, vivem uma esquizofrenia de uma falta de moradores, mas a presença de moradores, que é meio invisível e que se torna visível cada vez mais. Todo problema do Pelourinho, gira em torno da falta de turistas para manter o comércio. É uma aberração, aquilo não é um parque de diversões e nem é um parque turístico, é um parque histórico, que interessa à cidade, ao país e a humanidade. Mas interessa também às pessoas que moram ali e que vão continuar a existir. É como todos os centros históricos do mundo, o Pelourinho não é o único. Mas ali teve uma intervenção maciça, de extinção dos moradores, de limpeza étnica…

FERNANDO: Eu trabalhei lá, eu vi famílias inteiras saindo e marginais ficando…
MM: “Ó pai ó”, é mais ou menos dessa época de 1992, quando começou essa reforma. Em 1991, quando estreou Essa nossa praia, ainda não estava acontecendo, mas já se falava vagamente sobre a reforma, que é um tema recorrente no Pelourinho. São várias reformas, vários projetos e várias propostas, tinha o projeto de Lina Bo Bardi, que era fantástico, mas foi cortado na gestão de Antonio Carlos Magalhães…
FERNANDO: Esse projeto, previa uma ocupação melhor, e muito mais coerente…
MM: Era uma valorização dos serviços que tinham lá, que era uma combinação de moradia com serviços, com comercio e patrimônio. Não seria uma coisa só, era um conjunto de ações que dariam uma sustentabilidade. O grande problema do Pelourinho é a ausência absoluta de sustentabilidade porque o turista não sustenta o local, o governo é quem tem que sustentar os proprietários, que em grande parte são as igrejas. É uma coisa completamente, ó pai ó.
“O grande problema do Pelourinho é a ausência absoluta de sustentabilidade, porque o turista não sustenta o local, o governo é quem tem que sustentar”
FERNANDO: Quando você estava à frente da Secretaria surgiu um projeto para o Centro Antigo?

MM: É um plano de revitalização do Centro Antigo, que entende o Pelourinho como parte dele, porque é uma estupidez você imaginar um território urbano isolado do resto. Os problemas e as soluções do Pelourinho estão no em torno dele. Esse plano foi elaborado por mais de 600 pessoas, que participaram e discutiram sobre ele. Foi um plano construído coletivamente, através de um pacto federal e com a sociedade. Esse é um plano que tem tudo para dar certo.

FERNANDO: Quando você deixou a Secretaria, esse projeto ficou para ser implementado. Do que dependia essa implementação?
MM: Dependia da ação de várias outras secretarias, da prefeitura, principalmente, já que é um território urbano, e é da prefeitura. O estado fez uma intervenção, que subtraiu da prefeitura a responsabilidade e o direito de trabalho sobre uma área urbana…
MATILDE MATOS: O artista cuja carreira venho acompanhando desde os Avelã y Avestruz e a criação do Bando de Teatro Olodum. Como você se sentiu enquanto Secretário de Cultura?

MM: O que um Senado faz? Transforma um discurso em ação, para que essa ação possa transformar a sociedade. Essa é a função do artista e essa também é a função do gestor público. Você tem um discurso, um pensamento, algo que defendeu a vida toda e tem a oportunidade de transformar isso em algo coletivo e essa ação transforma a sociedade. O lado artista iluminou muito o caminho do gestor porque eu sempre tive que ser gestor para administrar um grupo, um teatro, mas não só da sua força de trabalho, agora de uma força de trabalho mais coletiva.

Mas agora, eu estou vendo coisas acontecerem que foram fruto do meu trabalho na Secretaria de Cultura. Eu estava vendo no jornal, uma matéria sobre os Cines Clubes, e isso durante a minha gestão foi uma batalha, eu sempre falava, “vamos incentivar os Cines Clubes”. Então, eu vejo coisas surgindo que ninguém se refere, e nem tem que, porque era meu trabalho e eu fui pago para fazer aquilo, e vejo que deu resultado.
“O lado artista iluminou muito o caminho do gestor, porque eu sempre tive que ser gestor, para administrar um grupo, um teatro”
FERNANDO: Você foi um dos poucos artistas que assumiu publicamente a adesão à campanha de Jacques Wagner, mesmo quando as pesquisas o mostram como perdedor. Em tempos de Carlismo, isso era uma atitude corajosa, principalmente para quem tem um teatro que também recebe verba do governo. Você sofreu algum tipo de retaliação por conta dessa postura da gestão da direita?

MM: Primeiro, quando viemos para cá em 1994, meu princípio era: vamos trabalhar, quando a gente começa a andar as coisas começam a convergir. Quando Paulo Gaudenzi assumiu a secretaria em 1995, ele me chamou para conversar, onde elogiou o nosso trabalho, mas nos disse que sem incentivo não iríamos adiante. Então ele nos ofereceu a ajuda do estado. Mas isso é obrigação do governo, ele tem a obrigação de fomentar a cultura e os serviços públicos. Paulo Gaudenzi nunca me cobrou nada pelo fato de termos posições politicas contrárias, e o que ele fez é obrigação dele enquanto gestor público. A gestão da época mostrava o teatro nas campanhas, que de fato era uma ação dela e eu não poderia negar, assim como outras obras entravam no pacote de ações positivas do governo na área de cultura.

Quando houve a eleição de Wagner e o meu apoio, eu não me lembro de ter ido para mesa, palanque, para apoiar ninguém. Eu nunca fiz isso em nenhum momento da minha vida, a não ser com Luiz Alberto, porque é um deputado negro e que eu acredito.
“Paulo Gaudenzi, nunca me cobrou nada pelo fato de termos posições politicas contrárias, e o que ele fez é obrigação dele enquanto gestor público”.
FERNANDO: Mas eu me lembro de você ter declarado isso, até porque eu li.
MM: Eu não conhecia Wagner profundamente, não tinha nenhuma relação de amizade com ele. Quando eu o conheci, ele era ministro e marido de Fátima Mendonça, que foi colega do meu irmão. Mas ainda assim, eu não tinha uma relação muito próxima. Eu estive com Wagner por algumas vezes, uma dessas foi quando ele já era Ministro do Trabalho e esteve aqui para assistir a uma peça de teatro. Então nós conversamos sobre um projeto de formação de mão- de- obra, para as artes cênicas, e depois fui até Brasília conversar com ele. Enfim, ele já sabia da existência do Bando e dos projetos. Depois eu fui convidado, juntamente com várias pessoas, por ele, para conversar sobre os problemas da cultura baiana e como ele poderia construir um programa político para a cultura.
Quando houve o lançamento desse projeto de cultura, no mesmo dia seria a abertura do II Fórum de performance negra, no Vila Velha, eu preferi ir ao lançamento do projeto, porque eu acreditava em Wagner e continuo acreditando. Acho que ele é um grande estadista, uma pessoa íntegra completamente idônea e que tem um discurso colado com a ação. Sabemos que as questões políticas são complexas às negociações, essa coisa de ter que ceder ali para ganhar aqui. Não é que eu concorde com exatamente tudo que ele faz, mas da integridade dele eu não duvido. Ele seria o único gestor de quem eu aceitasse ocupar um cargo como esse, eu não me vejo secretário de nenhum outro governo. É uma coisa mesmo de admiração por uma proposta política e eu vi a coerência na pessoa que propunha aquilo.
(…)acreditava em Wagner e continuo acreditando. Acho que ele é um grande estadista, uma pessoa íntegra completamente idônea e que tem um discurso colado com a ação.”
UIARA NANA: Como todo gestor público você recebeu um “pepino”, uma Secretária de Cultura conjugada com a de turismo, que era o grande cartão postal da gestão da direita. Dentro desse contexto quais foram as dificuldades iniciais e em que isso atrapalhou sua administração?
MM: Tem um problema estrutural, porque essa divisão nunca foi de fato revista. O que era de cultura passou para cultura e o que era de turismo passou para turismo. Mas a quantidade de assessores aptos à acompanhar os projetos, não foi dividida adequadamente. O número de assessores para a Secretaria de Cultura ficou bastante reduzido…
FERNANDO: A verba também não deveria ser a mesma…
MM: A verba, se não foi a mesma era maior. Não era uma questão de verba…
FERNANDO: A verba do estado ou do ministério?

MM: Na verdade se tem um montante, tem o orçamente do estado e o de convênios que são com os ministérios e outras instituições. A verba é pouca, porque sempre foi pouca, mas durante a nossa gestão foi feita uma pesquisa, onde apontava a Bahia como o segundo estado em investimento na área cultural, perdendo apenas para São Paulo. Com uma diferença muito grande em volume de investimento, mas ainda assim, estávamos na frente de estados como do Rio de Janeiro, de Minas e de Pernambuco, por exemplo.

Justiça seja feita, sempre tivemos o apoio das secretarias da fazenda, de planejamento, de administração e todas as áreas envolvidas, sempre tiveram muito cuidado e muito entendimento do papel da cultura no governo Wagner. Evidentemente que temos que levar em consideração que em saúde e educação, o estado tem um déficit muito grande, e são coisas que a sociedade entende como básicas e acabam não percebendo o quanto a cultura também é algo básico. Mas o governo é reflexo da sociedade, por mais que o estado tenha valorizado a cultura, a sociedade ainda acha que ela não é tão importante quanto a saúde, educação e infraestrutura.
FERNANDO: Mas na gestão da direita a Secretaria de Cultura e Turismo, era o cartão postal…
MM: Porque eles apostavam em eventos de visibilidade. Por isso que eu digo, que não é uma questão de verba, o problema era que o dinheiro ficava concentrado só em Salvador, e a Secretaria de Cultura do Estado acabava ocupando o papel da Secretaria Municipal de Cultura. Tanto é que até hoje não temos uma Secretaria Municipal de Cultura, e isso, é uma aberração criada por esses quarenta anos do mesmo grupo político no poder.
Mas é importante dizer que esse grupo continua no poder, não está no governo, mas está no poder e em parte do governo. A outra parte continua no Tribunal de Contas, nos principais meios de comunicação, na Procuradoria, continua na elite econômica e na elite cultural. A elite cultural, que sempre teve voz porque tinha investimento. Quando essa elite percebeu que o movimento do estado era distribuir melhor os investimentos da secretaria, investindo melhor no estado inteiro, começou a gritar, a difamar e dizer coisas…
“(…)a Secretária de Cultura do Estado acabava ocupando o papel da Secretária Municipal de Cultura. Tanto é que até hoje não temos uma Secretária Municipal de Cultura, e isso, é uma aberração criada por esses quarenta anos do mesmo grupo político no poder.”

FERNANDO: Essa é uma política que acompanhava os mesmos direcionamentos do ministério.

MM: Acompanhava uma tendência contemporânea do estado de entender a cultura, não só como arte, mas como cultura. Essa diferença, que ainda não ficou muito clara para a sociedade como um todo é fundamental para se compreender o processo que passamos no período de Gil e Juca, e nos últimos quatro anos aqui na Bahia. O entendimento da cultura como papel do estado é diferente do papel das artes, as artes fazem parte da cultura. Mas fomentar a cultura é também fomentar mercado, é fomentar uma cadeia de sustentabilidade, uma capacidade da sociedade de produzir e consumir isso, é não financiar somente para um grupo e para alguns.
Então, a crítica não é o problema, o problema é uma campanha contra, de pessoas que discordavam de mim politicamente ou tinham problemas pessoais comigo, e essas pessoas transformaram essa antipatia em problemas políticos e personalizaram em mim uma série de questões.


FERNANDO: Logo no início da sua gestão houve uma polêmica, que a imprensa fez questão de lhe acusar, foi sobre as fundações particulares que são mantidas pelo estado. Eu me lembro de que houve até uma interferência do ministro Gil. O que aconteceu na verdade?

MM: Precisamos entender o papel do estado, por exemplo: na educação, na saúde, nos transportes públicos e em outros setores. O estado tem uma forma de desenvolver política para fazer o atendimento público e prestar o serviço à população. Através da sociedade civil, de empresas, instituições de caráter privado e por meio de vários programas, como por exemplo: as bolsas para as faculdades e universidades particulares, convênios com clínicas que dão atendimento especializado. Então essas associações e esses convênios com a sociedade civil, são muito importantes para que as ações do estado se calcarizem e atendam a todos, porque as instituições governamentais não dão conta de tudo.

Isso não é um problema, na verdade o que a procuradoria, a auditoria pública e o Tribunal de Contas falaram e questionaram logo no início da minha gestão foi a manutenção de algumas instituições que tinham praticamente 100% dos seus gastos e projetos financiados pelo estado. Os investimentos não iam apenas para as instituições privadas, haviam também instituições quase que para-governamentais, que foram criadas tendo funcionários públicos no seu quadro para cumprir determinadas tarefas que o estado não tinha como executar. Organizações foram criadas para fazer ações governamentais, que depois acabaram, porque o estado criou programas que seriam supervisionados diretamente por ele.

Há vários tipos de instituições, como o teatro Vila Velha, que é a única que eu vou citar nominalmente. Recebeu e continua recebendo do governo em torno de 30% do que corresponde ao funcionamento do teatro. Os projetos, são bancados pelos grupos e pelos artistas. O Vila Velha é mantido com 30% de recurso público, o resto é por patrocínio, leis de incentivo e a própria arrecadação. Mas haviam algumas que tinha 100% e outras que tinham mais de 100% de recursos vindos do estado. Eu tive uma preocupação muito grande nesse período, de não deixar chegar a opinião pública uma falsa imagem de que essas organizações eram ilegais.

No terceiro ano de gestão conseguimos lançar um programa, que teve a participação da procuradoria. Onde todas as instituições que tivessem caráter continuado pudessem participar através de editais. O programa estipula metas e define critérios que vão sendo acompanhadas pelo estado.
“O Vila Velha é mantido com 30% de recurso público, o resto é por patrocínio, leis de incentivo e a própria arrecadação.”
FERNANDO: Hoje essas fundações não são bancadas integralmente pelo estado?
MM: Não, nenhuma tem mais esse apoio, porque logo de início houve um corte por determinação do Tribunal de Contas e pela procuradoria. Então foi estabelecido um teto que não concedia 100% de recursos estatais para cada um e nunca seria e nem será. Foi estabelecido um teto de no máximo 80% de incentivo. Mas esse critério de financiamento é estabelecido através de um programa que estipula normas para a concessão de verbas, são elas; o tempo de existência da instituição, o patrimônio que ela abriga, a quantidade de ações que ela propõe e a área que ela ocupa.











1 DE JULHO DE 2011


ENTREVISTA


Na continuação da entrevista com Márcio Meirelles, o ex- Secretário falou um pouco mais sobre a sua gestão e como lidou com a reação do público, das alegrias e tristezas.
“(…) Eu não consegui me ver nos olhos das pessoas a minha imagem, eu só conseguia enxergar a imagem do secretário.”
MATILDE MATOS: Qual foi a vantagem de colocar à frente do MAM alguém tão afastado da arte visual local?
MM: Solange Farcas não é uma pessoa afastada da arte visual local. O problema é que existe um entendimento entre os artistas locais, de que só eles que devem ser beneficiados. Recentemente participei do corpo de jurados, no Espirito Santos, do projeto de residência artística, onde todos os trabalhos falavam apenas do grupo e dos interesses do grupo, a preocupação da equipe nunca estava focada no público e essa postura desloca à atenção do estado para o produtor e não para o público.
A ação do estado deve ser para o público, pois é ele quem sustenta o estado, os artistas são apenas instrumentos. Então no MAM tinha uma pessoa antenada com a produção contemporânea no mundo, e a ideia era essa, dialogar com o mundo. Durante muito tempo a Bahia ficou nesse pensamento do artista local, esquecendo que todo artista necessita do mercado internacional e do nacional para expandir. Não podemos ficar fechados, só fazendo exposições de artistas locais, é necessário que haja essa oxigenação, essa troca de informação. A ideia foi tão bem recebida pelo público que a visitação aumentou em 300% com essa política de arte contemporânea, e se a visitação cresceu tanto, é porque tem algo de bom ali.
FERNANDO: Essa colocação de Matilde é em função do que vinha acontecendo antes de você chegar; O museu tinha uma pessoa que também tinha uma política muito voltada para fora.
MM: Há uma pequena confusão, os museus são parte da política para as artes visuais, eles não podem se tornar galerias de arte. Tem que existir galerias de arte fortes, que façam exposições, que promovam os artistas baianos e que criem mercado. A partir daí, o museu complementa essa política.
Aqui na Bahia espera-se sempre que o estado resolva todos os problemas dos artistas. Eu acho que o governo tem a obrigação de fomentar e de desenvolver a sociedade através da cultura, da saúde, da educação, da infraestrutura, do comércio, da agricultura e de todos os seguimentos necessários. Eu fiquei muito feliz quando percebi que era isso que Gil propunha, e como artista fiquei muito feliz em saber que o estado finalmente entendeu a cultura como papel de estado e que essa nova postura beneficiaria a sociedade e não um grupo de pessoas dessa sociedade, que são os artistas.
FERNANDO: O que acontece é que o mercado de artes visuais é muito pouco incentivado há muitos anos…
MM: Então era preciso que alguém mudasse isso. Esse é o segundo ano que eu participo da Feira de Arte em São Paulo, e o mais impressionante é o volume de recurso que circula nesse evento. Você sabe quantos artistas baianos estão participando?
FERNANDO: Não deve ter quase nenhum.
MM: Tem sim, Paulo Darzé, é a única galeria baiana que participa do Expoart São Paulo. É preciso que se faça eventos como esse, pois é uma forma de complementar o investimento nessa área.
O mais importante, é fazer com que o artista compreenda que a arte que ele produz é um produto, que tem valor monetário agregado. As pessoas pagam para ver o espetáculo, não é uma obra divina, é um produto e tem que ser avaliado. Até porque os artistas fazem supermercados, eles querem ter carro e querem viver.
FERNANDO: É a mesma coisa com livro…
MM: Como você pode ter uma política para o livro sem ter uma discussão sobre o mercado, a indústria gráfica e a editorial, sobre o mercado de livreiros e sobre como fomentar isso? Por que ter o estado editando livros? É um absurdo! Esse comportamento destrói qualquer política de fomento ao livro. Porque assim, você pode competir com a sociedade civil editorial.
“O mais importante, é fazer com que o artista compreenda que a arte que ele produz é um produto, que tem valor monetário agregado. As pessoas pagam para ver o espetáculo, não é uma obra divina, é um produto e tem que ser avaliado. Até porque os artistas fazem supermercados, eles querem ter carro e querem viver”.
UIARA NANA: Você acha que as questões políticas podem ter atrapalhado sua administração enquanto secretário?
MM: Não sou de partido nenhum e nem serei. Mas essas questões partidárias são importantes em um dado momento.
Eu sempre questionei essa colocação sobre política representativa, a questão dos partidos representarem um pensamento. Primeiro porque não representa, por que existe dentro de um partido várias tendências, várias discussões que tornam tudo isso contraditório mais também muito rico dentro de um partido. No entanto eu acredito que exista algo muito complexo acontecendo no Brasil em relação a essas questões, por exemplo: a distribuição de cargos, seja no primeiro, segundo, quarto ou décimo escalão, continua sendo uma coisa partidária, e isso é complicado. Porque quando um governante é eleito tem por obrigação de fazer com que tudo funcione e não fazer a distribuição de feudos entre os partidos que os apoiaram.

“(…) Eu sempre questionei essa colocação sobre política representativa, a questão dos partidos representarem um pensamento. Primeiro porque não representa, por que existe dentro de um partido várias tendências, várias discussões que tornam tudo isso contraditório mais também muito rico dentro de um partido (…)”

FERNANDO: Isso aconteceu na Secretaria?
MM: Na Secretaria não. Sempre tem algum problema para administrar, mas essa distribuição não.
FERNANDO: Você como uma pessoa ligada à cultura. Como você vê esse início da gestão da Ministra da Cultura, Ana de Holanda?
MM: Há uma tentativa da parte de algumas pessoas, não dela especificamente, de negação da gestão anterior. Mas até o momento não há uma proposta clara desta gestão, e isso é complicado porque o programa de Gil e de Juca era muito claro. Mesmo que você fosse contrário àquela proposta ela estava ali muito clara e presente. Desmontar toda essa estrutura sem ter algo consistente para ocupar o projeto anterior é difícil.
Estou na expectativa do que vai ser. Por conta de algumas declarações dela, como a primeira, onde dizia que os artistas seriam o centro da política do ministério, como se eles fossem os únicos interessados nas políticas culturais providas pelo governo federal. Acredito que foi uma declaração infeliz, mas também acredito que foi uma forma de responder a alguns artistas que se consideram superiores aos demais. Como acontece aqui na Bahia, temos um grupo de artistas que se consideram “ôs artistas” os outros são bandidos, não são nada, não tem voz, não existem.
“(…) aqui na Bahia, temos um grupo de artistas que se consideram “ôs artistas” os outros são bandidos, não são nada, não tem voz, não existem.”
FERNANDO: Como você define o público de teatro na Bahia?
MM: É um mistério. Eu tentei fazer uma pesquisa na época em que estive na secretaria, começamos a elaborar, e eu acho que ainda vai ser aplicada. É sobre “o por que não?”: por que não vai ao teatro, ao cinema, por que não lê e por que não consome cultura. Nós sempre fazemos pesquisas sobre quem é o público consumidor, público esse, que nós sabemos quem são.
O público de teatro, de uma maneira geral, é setorizado, não é um público único. Existe um determinado tipo de espetáculo, ou um grupo, ou um teatro que tem o seu público, que tem um perfil especifico. É claro que essa especificidade é a maioria, mas você tem um público diverso que vai ao teatro e, a depender do espetáculo e da quantidade e da qualidade da divulgação feita para ele, vai ser atraído por um determinado espectador.
Pensando nessas questões do público, entram as questões da rede e das comunidades. Por exemplo: se você tem uma comunidade negra espalhada territorialmente, uma comunidade gay que também está espalhada e essas comunidades se reúnem para prestigiar algo que seja do interesse delas. O público se comporta da mesma forma, se você tem um teatro onde a comunidade negra se identifica, ela vai prestigiar.
FERNANDO: Essa segmentação é uma saída não só para o teatro, mais para toda a produção artística…

MM: Você setoriza porque sabe que vai atingir uma determinada comunidade, e essa comunidade se interessa pelo que você faz. Mas como expandir isso, porque tem artistas que se interessam em falar para todos os públicos, tem aqueles que só se interessam em falar para si próprio e tem aqueles que pensam que querem falar para todos. Na verdade você tem um interlocutor. Quando eu falo das questões negras, me interessa que o público branco assista e perceba. É uma consequência, mas eu tenho um foco, eu sei para quem eu quero falar.
“(…) porque tem artistas que se interessam em falar para todos os públicos, tem aqueles que só se interessam em falar para si próprio e tem aqueles que pensam que querem falar para todos. (…)”.
MATILDE MATOS: Como Secretário qual foi à realização que lhe deu prazer?
MM: Foram muitas. O fato de mobilizarmos cem mil pessoas no estado para discutir cultura nas conferências estaduais de cultura, é um fato que me orgulha muito. Apesar da maioria das discussões parecerem imaturas na primeira Conferência, na segunda percebemos que o nível de maturidade e de conhecimento era muito maior.
Outro ponto foi à criação dos territórios culturais e a participação dos representantes desses territórios à institucionalização da cultura. A criação de programas de apoio às ações continuadas das instituições. Os editais que apesar de eu sempre ter dito como uma ferramenta de transição de um modelo para outro, foram bem pensados e estão sendo usados como forma de capitalização das ações do estado, através de associações ou instituições da sociedade civil.
Outro programa que me deixou muito feliz é o Carnaval Ouro Negro. Este é um programa que tem que evoluir, não pode só ficar recebendo recursos das instituições para que elas participem do desfile. É importante que elas tenham ações continuadas, não podem ficar limitadas ao carnaval. Esse investimento, organizou um setor fortíssimo do carnaval, um setor matricial que são os afoxés, os blocos afros. Também houve as discussões sobre as redes produtivas, o mercado, a economia da cultura. Sobre as pesquisas que fizemos sobre os números da cultura baiana que ainda são poucos, o apoio ao áudio visual, o box dos 100 anos de cinema baiano, isso para mim é algo muito gratificante, eu adoro ter feito tudo isso.
FERNANDO: Conte um pouco sobre a Bença?
MM: Era um projeto meu para o aniversário de 10 anos do Bando, que se chamava “respeito aos mais velhos”. Um pouco antes de eu entrar na Secretaria, inscrevemos este projeto no edital da Petrobrás e fomos premiados logo no início da minha gestão. Eu já não estava no projeto porque tive que assumir a Secretaria.
Para esse trabalho, foi feito uma pesquisa durante dois anos, e o final da pesquisa culminou com o aniversário de 20 anos do Bando. Esse era um projeto que eu queria fazer, sobre o tempo, os mais velhos e todos esses valores que estão se perdendo. Tem haver com a violência, eram os 20 anos do Bando, um grupo que eu criei junto com outras pessoas e que me ajudou na minha formação enquanto artista e que é muito importante para mim. Participei da direção, lógico, dentro do tempo que eu tinha disponível. Então um projeto que era para ficar pronto em dois meses, só ficou pronto em nove e eu nem sempre tinha tempo de participar de todos os ensaios. Nesse espetáculo eu propus uma coisa nova para o grupo, promovendo a interação com outras linguagens, com a tecnologia e o fato de trabalhar sem personagem, o que foi um desafio para o grupo.
FRENANDO: Numa carreira de destaque nacional, tendo sido Secretário de estado, qual a maior mágoa e qual a maior alegria?
MM: Não tenho mágoa, é tão ruim ter mágoa de alguém. Também não tenho tristeza, eu fico muito irritado com algumas coisas, com alguns grupos de pessoas. É estranho ver como as pessoas dissociam você de você mesmo. Eu não consegui me ver nos olhos das pessoas a minha imagem, eu só conseguia enxergar a imagem do secretário. Inclusive pessoas de teatro que podem compreender muito bem a diferença entre uma coisa e outra, como por exemplo: que um ator pode fazer vários papéis e continuar sendo aquele ator. Esse foi o meu caso, eu pude ser secretário porque eu tenho essa reflexão sobre o mundo, a politica, a cultura. Então era muito estranho eu não me ver no outro, e durante todo o tempo em que fui gestor público, sempre tentei manter essa coerência, de ser a mesma pessoa. Mas houveram momentos de embates que acabaram construindo uma imagem, mas com o tempo essas imagens são desconstruídas.
“(…) Eu não consegui me ver nos olhos das pessoas a minha imagem, eu só conseguia enxergar a imagem do secretário.”
FERNANDO: E as alegrias?
MM: As alegrias são de ver as ações que foram planejadas, sendo realizadas e dando certo. Mas tudo é transitório, então desde o início eu sabia que seria por apenas quatro anos e que eu tinha que fazer o melhor para resultar no melhor. Algumas coisas eu consegui, outras não; algumas iriam brotar, outras não. Talvez seja por conta do cuidado que tínhamos com os projetos, ou por escolhas, ou por uma resposta da sociedade, até porque não se constrói uma administração pública sozinho, tudo depende da sociedade.
“(…) desde o início eu sabia que seria por apenas quatro anos e que eu tinha que fazer o melhor para resultar no melhor (…)”.