30.5.11

RESPEITO AOS MAIS VELHOS

foto: João Milet Meirelles

O projeto RESPEITO AOS MAIS VELHOS, de manutenção do Bando de Teatro Olodum, patrocinado pela Petrobras, através de edital de 2007, previa, ao fim de dois anos de atividades diversas, a construção de um espetáculo baseado na pesquisa e nas vivências do grupo com comunidades, lideranças e artistas negros mais velhos, conhecedores dos efeitos do tempo e da necessidade da memória.

O tema, Respeito aos mais velhos, evidenciou a necessidade de respeito ao próprio tempo. O tempo nas dimensões cronológica e simbólica, e a percepção de sua passagem e de sua permanência, como fatores físico e mítico.

As heranças das culturas de nossos ancestrais negros estão preservadas especialmente nos ritos e liturgia das religiões de matriz africana. Mas também no cotidiano de outros coletivos culturais e artísticos, com quem o grupo se relacionou durante o cumprimento desta etapa.

A construção da peça que falasse sobre isso, passava também pela construção de uma metodologia de trabalho diferenciada que agregasse ao processo teatral, de alguma maneira, aquelas formas de repasse de conhecimento silencioso dos terreiros, das rodas de capoeira, e – por paradoxal que possa parecer – de outros saberes de transmissão oral. É que estas oralidades afrobrasileiras estão preservadas também em gestos, atitudes, maneiras que se reproduzem pela observação do que é dito e do que é silenciado. Do como e porquê as coisas são ditas ou silenciadas.

Por outro lado, o espetáculo deveria dialogar com uma platéia, não necessariamente formada nesses assuntos e nessas tradições ou sequer informada sobre eles. Uma platéia contemporânea acostumada com a velocidade: a negação do tempo. Platéia formada pela dinâmica de uma sociedade que encara a morte como um fim e a velhice como nada mais do que o caminho para isto – ao contrário da tradição africana que considera a idade como um acúmulo de experiências que nos prepara para a passagem de uma vida para outra – uma sociedade que considera a juventude como um valor em si, e que é preciso preserva-la a todo custo, num frenesi de consumo de fórmulas mágicas, cosméticas, cirúrgicas e comportamentais, para a consagração da eterna juventude. Era para essa platéia que também queríamos falar.

A escolha de uma linguagem dramatúrgica oriunda das redes sociais e da cultura internauta, e o uso de tecnologias audiovisuais pareceram adequados para se conseguir esse fim por que neles se identificou também uma convergência com as formas de expressão das comunidades matriciais que forneceram generosamente material para a construção da peça. O tempo, em sua permanência, está representado no espetáculo pelo passado em imagens e depoimentos gravados, presentes no momento em que atores e câmeras produzem e reproduzem imagens e discursos – narrativas engendradas pelo contato com esse passado – ao vivo, em comunhão com a platéia.

Isso deu certo. O espetáculo emociona os jovens, que se sentem levados para outro tempo. E os mais velhos e iniciados no candomblé, que sentem-se respeitados e representados na peça.

Essa opção estética, no entanto criou dificuldades para levar a peça às cidades onde o grupo passou e colheu material. A necessidade de um espaço específico de 20 metros por dez, com platéia dos dois lados diminuiu as opções de viagem: apenas o Rio, ofereceu um espaço assim. Por outro lado, os equipamentos de som, vídeo e computação necessários à reprodução das imagens e sons gravados, encareceram cada apresentação, tornando inviável – dentro do orçamento do projeto – mais três temporadas em diferentes locais.

A solução, entendida e aceita pela Petrobras, foi fazer mais uma temporada em Salvador e trazer as pessoas e instituições que ajudaram o Bando a montar a peça. O que foi um acerto porque, ao se mobilizarem para vir, um grupo interagia com outro. As prefeituras ou instituições que apoiaram a ida do projeto para suas cidades, voltaram a apoiar a vinda desse público para Salvador e muitos gestores públicos acompanharam as caravanas. O que mostrou ao poder municipal a importância da cultura negra e a necessidade de sua aproximação com ela, através dos mais velhos, das entidades matriciais, dos terreiros, dos mestres, dos afoxés, grupos de capoeira, blocos afro.

Os encontros entre os visitantes e seus semelhantes locais também foram de uma riqueza muito grande, gerando possibilidades de intercâmbio e troca de experiências e conhecimentos entre eles.

Por tudo isso, consideramos o projeto vencedor e acertada a escolha da Petrobras ao patrocinar uma ação continuada, um programa, não apenas um evento, como uma montagem ou uma turnê. O avanço na pesquisa da linguagem e na busca de diálogo com um público específico foi fundamental para o desenvolvimento do Bando de Teatro Olodum, o que o levou a contribuir mais uma vez, tarefa de toda ação cultural, com o desenvolvimento da sociedade, elaborando e implementando políticas afirmativas para a elevação da autoestima dos idosos e dos tradicionalmente excluídos ou perseguidos e para a redução da discriminação racial e da intolerância religiosa.

salvador, 30 de maio de 2011

22.5.11

O teatro e as novas tecnologias

Creio que a Universidade Federal do Recôncavo cumpre, no momento, para a cultura baiana, o mesmo papel que a UFBA nos 1950s/60s, com a implantação de seus cursos de arte. Ferve algo em Cachoeira/São Felix de muito positivo. e que dará resultados em breve.
Fui convidado para falar para os alunos de Artes Visuais e Audiovisual sobre a minha busca no campo do diálogo entre teatro e novas tecnologias. O papo vai ser dia 25/05, quarta feira próxima, entre 14 e 15h, na Sala 13 do CAHL-UFRB, Rua Maestro Irineu Sacramento, S/N, Centro, Cachoeira - BA.
o papo vai ser em torno do que se segue:

BENÇA, espetáculo do Bando de Teatro Olodum
foto João Milet Meirelles

O teatro só é possível se for necessário. Essa é a grande questão que o mundo contemporâneo faz a nós: Que teatro é necessário?
Temos uma sociedade cada vez mais fragmentada e setorizada, territorialmente – no sentido mais amplo que território possa ter – e setorialmente. Então teremos um teatro fragmentado, territorializado, setorizado, dirigido a pequenos públicos que estejam naquele território, pertençam àquele setor ou grupo ou falem aquele idioma ou dialeto...
O teatro de Shakespeare, por exemplo, congregava num mesmo espaço as elites, os comerciantes, o povo... Ou seja, toda a sociedade estava ali e as peças tinham que se dirigir a toda ela. Hoje, nem o teatro de rua consegue esse feito. As elites não estão nas ruas. Talvez a televisão consiga isso territorialmente... Mas, mesmo a televisão e o audiovisual estão se setorizando, vamos dizer assim, e sendo realizados, cada vez mais por todos para alguns. É o caso do Youtube, dos blogs e de todas as redes sociais: você produz seu discurso e o disponibiliza para todo mundo ou para sua comunidade. E aí vem uma outra questão contemporânea, a reprodutibilidade dos discursos e seu alcance, a capacidade de se reproduzir, dialogar em diversas mídias e alcançar qualquer um, em qualquer lugar.
O mundo do teatro depende da presença física de assembléia e orador e do tempo real. Todos estão aqui-e-agora juntos para, através do compartilhamento de emoções, discutir questões da comunidade.
Talvez tenhamos que repensar então a natureza do teatro, considerar a presença virtual como um fato do século XXI e assumir o tempo real da internet. Muitas experiências já estão sendo feitas no mundo. Talvez este seja um caminho.

APRESENTAÇÃO

Há 20 anos dirijo o Bando de Teatro Olodum, e sou responsável pela maioria de suas criações. Nelas perseguimos a construção de novas narrativas. A montagem de textos clássicos, como Sonho de uma noite de verão ou Ópera de três vinténs ou Woyzeck, são também exercícios e pesquisa para a criação de nossas narrativas.

Há algum tempo temos trabalhado na construção de uma dramaturgia que dialogue com as novas mídias e suportes e que trabalhe com a dramaturgia das redes sociais. Venho investigando a tempos os roteiros e discursos fragmentados que surgem das discussões nas redes. Vejo aí um rico material dramatúrgico, mas que depende de atores aptos a dialogar no palco com as novas tecnologias.

O trabalho comemorativo dos 20 anos do grupo chama-se BENÇA. É um tributo à tradição, ao poder do tempo e aos mais velhos. Mas é um espetáculo/instalação que usa a tecnologia como parceira dos atores em cena. Começamos a experimentar ações na internet. A princípio apenas colocamos fragmentos de ensaios, fotos e informações no Youtube, em sites, nas redes sociais e no blog do grupo. Geramos algumas discussões sobre os temas e inserimos formas narrativas dos fragmentos dessas discussões na peça.

O projeto que estamos desenvolvendo agora: trilogiaRemix.DOC_aquartapeça, começa a ser construída, de forma colaborativa. Além dos artistas que fazem parte do grupo, outros têm participado do processo: fotógrafos, roteiristas, músicos, cineastas. Também temos tido a presença ativa de moradores do Centro Histórico de Salvador, território urbano, sobre o qual se fala na peça. Os ensaios estão sendo acompanhados online via twitter, com interação e diálogo com internautas. Assim, mobilizamos uma comunidade interessada em debater questões raciais, de gênero, de exclusão, de violência, a partir do teatro.

Estamos implantando um laboratório de pesquisa de tecnologia e narrativas e vamos apresentar um relato dos processos e métodos de trabalho implementados para alcançar os resultados esperados: o envolvimento das comunidades interessadas em nosso discurso e a difusão virtual dele para quem não pode companhá-lo presencialmente; e a redescoberta da necessidade do teatro simultaneamente como arena de debates e de divertimento.


19.5.11

DO FACEBOOK


‎"Só 7% dos brasileiros foram ao teatro em 2010, segundo pesquisa da Fecomércio-RJ. O levantamento, feito com mil pessoas em todo país, revela que não é o preço que afasta o público dos palcos, mas sim a falta de hábito, citada por 42% dos entrevistados. "
há 10 horas ·  · 

    • Marcio Meirelles gostaria de saber dos amigos aqui do fb: por que vc NÀO vai ao teatro. na boa, acho q esta pesquisa devia ser feita. sabemos qual o nosso público, mas n pq n temos público. o q afasta as pessoas desta linguagem?
      há 10 horas ·  ·  2 pessoas

    • Mônica Santana Sempre me pergunto disso. Convivo tanto com artistas, como com comunicadores, profissonais liberais e noto sempre que as pessoas que consomem cinema, shows, livros, até mesmo cds (essa coisa pouco comprada hoje em dia), raramente vão a teatro. Não está no hábito.
      há 10 horas · 

    • Ricardo Cavalcanti 
      Deixando de lado os discursos apaixonados dos que gostam, para o que o teatro oferece, o preço influi muito sim, em não se criar o hábito de ir ao teatro, mas existem outros motivos para isso: a falta de criatividade das peças (a maioria está cheia de personagens esteriotipados ou falta originalidade); a pobreza da produção, sonorização e dos cenários se comparado a novelas, filmes e shows musicais, seus concorrentes diretos; a localização e manutenção dos teatros, sem estacionamento seguro, etc...(será que funcionaria num shopping?). Poderia citar mais, mas para encerrar, por enquanto, é preciso um bom motivo para tirar a maioria das pessoas de casa à noite, principalmente os que trabalham, criem o motivo e as pessoas responderão.

      há 9 horas · 

    • Lu Alencar 
      Márcio, acredito que deveria existir uma política de sensibilização do público, diferente do que seria "formação de platéia", ou seja, deveria haver uma maior diálogo entre cultura e educação, havendo uma disciplina na grade curricular das escolas para que os alunos do ensino básico vivencie a arte. Como os pontos de cultura que já vem exercendo essa função. A segmentação dos teatros também vejo como uma alternativa para que o público crie uma identificação com o lugar, como por exemplo, o próprio Vila Velha que se dedica a temática afrodescendente. As biliotecas e espaços culturais em geral também poderiam ser locais que programassem espetáculos que por alguma dificuldade de pauta não possam de início entrar em circuito. Bom, são algumas possiblidades que identifico para o problema.

      há 9 horas · 

    • Sérgio Cerviño Rivero 
      O X... Como fazer essa cultura virar cultura pras pessoas? Não é pelo preço...Teatro tinha que ser matéria nas escolas... Vai pela formação escolar e familiar... Eu cresci indo no Tablado... Mas tem tb uma outra coisa... Não seriam o cinema, o CD e o livro produtos mais avalizados pela chamada elite intelectual e o mercado mesmo...? E atingiriam uma outra faixa de publicização muito mais agressiva? Afinal, onde se veicula teatro na BA? Comparem com o cinema, livro e CD... São produtos como pasta de dente hj... Me impressionou ver, no RJ, a campanha pra lançar tal livro da série Harry Potter... Banners imensos, de 10 em 10 metros, por toda a Atlântica, no canteiro central entre as pistas... A questão tb da crítica e resenhistas... Quilos de blogs sobre cinema e livro... E sobre teatro? Eu acho que a questão tá muito na 'venda' do produto mesmo... E, claro, a especificidade baiana... Quer queiramos ou não, na cabeça das pessoas a marca registrada 'filme americano' é carimbo de qualidade... Pelo menos, tecnicamente falando... O mesmo com o livro... Vc se depara com um Cia das Letras, um Cosac & Naif, vc já olha de outro jeito... Teatro na BA tb tem marca, grife: TVV, FG, MM, Cacilda, Simões... Falta inserir na educação esta cultura e falta chancelar, de maneira agressiva, local e nacional, este produto... Agora, $$ tb é um meio necessário pra isso...

      há 8 horas · 

    • Daniel Arcades 
      Li o que Marcio Meirelles tinha colocado no facebook e na aula de português perguntei aos meus alunos o porque eles nunca foram ao teatro (80% da turma do 1º ano do E.M. nunca tinha ido). Ouvi o seguinte comentário: Ah, professor, teatro não tem controle remoto. Se a peça for ruim, não tem como mudar. Vou levá-los para assitir o Shirê Obá. Acredito que o processo educacional pode ajudar muito na construção deste hábito. Acho que a mídia também pode influenciar muito esse processo. Não sei, às vezes penso que o teatro tem que invadir a mídia também. Estou pensando muito no controle remoto do meu aluno...

      há 8 horas ·  ·  3 pessoas

    • Allexa Vieira Lamentável estatística! Teatro relaxa, descontrai, e, principalmente, ajuda a desenvolver o espírito crítico.
      Dramas, comédias, musicais...tem pra todos os gostos!!

      há 7 horas ·  ·  1 pessoa

    • Sérgio Cerviño Rivero ‎... Aula tb podia ter controle remoto... pra zapear os alunos... e eles zapearem os professores...
      há 4 horas ·  ·  1 pessoa

    • Sérgio Cerviño Rivero Aliás, a vida é uma zapeação só...
      há 4 horas ·  ·  1 pessoa

    • Daniel Arcades 
      É, nossa ousadia com a zapeação é extremamente necessária, embora achemos que ela só caiba em alguns espaços já determinados para isso. A vida deveria ser uma zapeação só... em busca de dias mais felizes. O problema é que na vida de alguns o sinal pega alguns canais, enquanto "a vida " traz 1000 canais para você escolher. Voltando ao teatro...Aqui em Alagoinhas, tivemos uma melhora de público com a ampliação da mídia Alagoinhense, o teatro começou a aparecer nas revistas locais, nos jornais locais, na rádio e acredito que o fator mais importante é um engraçado: quase todos os atores da cidade trabalham com educação, são professores na cidade e começam a levar muitas pessoas ao teatro. Pena que esses professores não conseguem montar mais do que dois espetáculos por ano e não conseguem criar um hábito do teatro, pois a comunidade escolar de Alagoinhas, junto com os pais, parentes, vão duas vezes ao ano ver a peça do professor. Alunos do anos finais do Ensino Fundamental principalmente, o Ensino Médio é mais difícil, acredito na ideia da formação desde a base inicial da educação para desenvolver a sensibilidade com as artes mesmo. O povo que faz teatro por aqui deveria ter tempo ou mais pessoas, para zapearem mais peças de teatro. E os alunos usarem o controle remoto a cada fim de semana.

15.5.11

O ATOR E O PERSONAGEM

Começamos a Oficina de teatro pra quem gosta de rock'n'roll.
1o dia da oficina
Uma coisa que sempre vem à tona é a questão do personagem: ele ou eu ou eu + alguma coisa - a consciência do rei?
Daí resolvi postar este artigo que escrevi para a extinta revista Cenário, do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Diversão da Bahia (por onde anda? qual a função?).

O ATOR E O PERSONAGEM

De onde vem os personagens? E o que são os personagens?

São seres viventes como nós, mas diferentes. De outra textura, de outra densidade. São seres compostos, fabricados. Clones de outras criaturas.

São vivos, disso não resta a menor dúvida. Existem.

Estão espalhados por aí. Feitos, como nós da mesma matéria que os sonhos. Feitos de desejos, pensamentos, reflexões, questionamentos, dúvidas, asserções, carne, suor, excremento. Feitos de um trabalho diário de buscas, investigação sistemática, construção de modos, gestos, sons.

Um personagem é como um instrumento que deve ser tocado pelo ator. Um instrumento construído com seus próprios ossos, carne, pele, sangue e energia.

Esse estranho engenho - o personagem - é arquitetado por um conjunto de artesãos, que juntam vasto material diariamente, para tal fim. Recolhem-no de leituras, de vivências, de memórias, de ouvir dizer, de ter visto hoje à tarde, de ter sentido, ou pressentido ou intuído.

Esse material recolhido pelo ator, junto com outros atores, autor, diretor, coreógrafo, cenógrafo, figurinista, iluminador, é armazenado no seu próprio corpo - que pensamento e emoção e sentidos também fazem parte do corpo - e colocado em camadas superpostas até que o instrumento personagem esteja pronto.

Uma vez pronto começa o trabalho de afinar e aprender a tocar. O ator tem que aprender a extrair dele todas as possibilidades que ele guarda em si, todas as maravilhas capazes de surpreender a platéia e encantá-la. Esse aprendizado é o mais doloroso, porque quase solitário. O ator segue sozinho atado inexoravelmente a seu instrumento, sendo um só com ele - ele e seu corpo - descobrindo as sonoridades que é capaz de produzir.

O diretor e os colegas podem alertá-lo de certos sons que são adivinhados. De certas possibilidades entrevistas por instantes. Mas ninguém pode ensiná-lo a tocar.

O público as vezes é a chave para isso. Quando o ator faz soar seu instrumento e este som ecoa, o eco é produzido na platéia, e assim, as vezes, ele começa verdadeiramente a se escutar. E só então seu personagem está completo. Quando o ator finalmente escuta, vindo da platéia, o eco - reflexo correto do som que emitiu.

A eficiência desse trabalho duro que o ator executa diariamente e sempre, depende mais de sua vivência do que de sua técnica, de uma ética que de uma estética. Depende da consciência que ele tem de seu papel. Depende basicamente de ele, ator, saber o que quer, de que lado está e de porque se propõe a juntar uma audiência toda noite para vê-lo.

Alguns atores o fazem por um exercício de vaidade e são grandes e nos dão, às vezes, enorme prazer. Mas prefiro, à esses, aqueles outros que o fazem por uma questão vital de estar entre os homens. De estar em frente ao outro diariamente afirmando sua condição singular de ser humano que questiona o porquê das coisas serem assim, e não como poderiam ser.


Salvador - 06/03/97

Marcio Meirelles
In Cenário, Ano 1 – nº 4, janeiro/1997

5.5.11

As mais fortes

Hoje conversava com Marcus Uzel, que está escrevendo o segundo volume do livro Teatro do Bando - negro, baiano e popular (de 2002 pra cá) sobre qualidades de atores. Lembrei deste texto que escrevi sobre Nilda Spencer e Yumara Rodrigues. Duas atrizes, sem dúvida nenhuma, cheias de qualidades:

As mais fortes
Em todas as apresentações de A Mais Forte sentei-me no mesmo lugar: uma cadeira colocada no fundo do Cabaré dos Novos, junto ao caixa, ao lado do balcão. Assim, todos os dias, quando Yumara Rodrigues e Nilda Spencer entravam em cena, vindas da platéia para o palco, e quando saiam de cena percorrendo o mesmo trecho, no sentido inverso, passavam pela minha frente sem nunca me olhar. Por mais que eu esperasse por essa olhada, ela nunca acontecia.

Eu via todas as noites aquelas mulheres - Yumara e Nilda, transmudadas em Senhora Y e Senhora X - passarem por mim, nessa ordem na entrada. A primeira de calça e camisa de linho branco e a segunda num conjunto vermelho. Na saída a ordem era a inversa: primeiro o conjunto vermelho da Senhora X deixava o Cabaré, seguida momentos depois pelo traje branco da Senhora Y. Quanta coisa acontecia nesse momento entre a passagem de uma e de outra. E que universo era construído e desfeito entre a entrada e a saída das duas.

No final, Nilda dizia, como a Senhora X, que ia para casa amar seu marido - objeto casual da disputa entre as duas - encerrando a guerra que acabava de ter sido deflagrada sobre o palco e, que, como toda a guerra, terminava sem vencedores nem vencidos, deixando-nos a dúvida de quem seria a mais forte, ou se realmente existia uma mais forte, já que as duas, com marido ou sem marido, estavam sozinhas e derrotadas. Eduardo Torres, então, tocava ao piano, uma composição sua, uma música belíssima, que acompanhava, como nossos olhos, a Senhora X sair, levando consigo a pretensão da vitória e deixando à mesa a Senhora Y com sua probabilidade de vitória recolocar o batom para, em seguida também sair.

Sábado passado foi o último dia do espetáculo. Eu estava sentado no meu lugar habitual. Nilda falou: “Agora vou para casa, para amá-lo”, Eduardo tocou o tema do fim, ao piano, ela desceu o palco e começou seu trajeto para a saída. Então me dei conta de que aquela era a última vez que eu veria aquela saída na minha vida. Que esperaria o olhar que não receberia, que ouviria os aplausos, que estaria emocionado, que veria Yumara passar batom, levantar, se despedir do pianista e da garçonete e também passar por mim para desaparecer no camarim.

Então percebi que aquilo que construímos durante os ensaios e as apresentações se acabaria para sempre, como tudo na vida. Com a diferença de que na vida, geralmente, não nos damos conta de que as coisas estão se acabando para sempre no momento em que se acabam, a não ser quando é a própria vida que termina e não aceitamos.

O inevitável estava para acontecer - o último dia da apresentação de um espetáculo. A senhora X pagou a conta à garçonete enquanto Nilda se preparava para seu desfile final em minha frente. Continuei a esperar o olhar que não aconteceria. Em breve passaria na minha frente uma senhora pequena, num conjunto vermelho, carregada de sacolas cheias de falsos pacotes, vinda de uma batalha e se encaminhando para o nada de um camarim onde ela deixaria de existir, para sempre, sem deixar sequer um cadáver, a possibilidade de um ritual fúnebre, parentes e amigos chorosos, nada. A Senhora X de Nilda Spencer deixaria de existir para sempre dentro de alguns minutos e ela nunca me deu a olhada que esperei, durante toda a temporada.

Nilda então passou, carregando consigo a sua Senhora X, com seu conjunto vermelho, seus falsos pacotes, e sua falsa vitória. Mas Nilda era realmente vitoriosa e grande, como a sua Senhora X gostaria de ser. Plena, inteira como uma rainha, reinando absoluta em sua passagem por minha frente. E o que eu via naquela pequena dama, o que passava, era a generosidade absoluta da entrega de uma atriz que tem se exercitado neste mister há bons quarenta anos. E continua a faze-lo diariamente durante os ensaios, como tive o privilégio de presenciar e compartilhar, com um tesão e um prazer de iniciante, mas com a experiência e a malícia de uma veterana que sabe extrair mais prazer do prazer.

As palavras do texto em sua boca, gozam não só do direito de serem ditas, uma a uma, envoltas na mais perfeita dicção, mas também o deleite de serem bem ditas por uma sensibilidade que as coloca, uma a uma, nos seus devidos lugares, com o peso e o valor precisos. As palavras em sua boca tornam-se assim preciosas.

O personagem, que carregava consigo para largar para sempre guardado nas dobras do conjunto vermelho, foi construído como se constrói uma casa onde vão morar nossos entes mais queridos, com todo o cuidado e o cálculo preciso para que nada desabe e para que, por muito tempo, mesmo depois de ter sido guardado para sempre em fotos, num conjunto vermelho e em notícias de jornal, abrigue as coisas imensas que produziu na nossa emoção intactas.

Chegou então Nilda à escada, virou-se e fitou mais uma vez o cabaré, a assistência e o palco onde estava a Senhora Y, sua rival, que Yumara, sua aliada, ostentava. Depois subiu, com seu conjunto vermelho e suas sacolas, levando a Senhora X embora para nunca mais.

Yumara continuava em silêncio, como durante todo o espetáculo. Tirou da bolsa seu estojo de maquiagem, seu batom e, repintou a boca. Seu silêncio gritava, como durante todo o espetáculo, tudo que as palavras não podem dizer. Era, como sua roupa, uma página em branco onde todos os poemas por escrever tem a possibilidade de vida.

Ela levanta, com sua roupa e seu silêncio brancos, carregando os pedaços da Senhora Y agora recompostos, recolocados em ordem, passa pelo pianista, faz um afago e não diz uma coisa em seu ouvido, se despede da garçonete e vai passar em minha frente.

Então acontece! Ela passa, uma rainha branca num tabuleiro de xadrez onde o xeque mate destruiu todas as peças porque o rei estava morto há muito tempo. Ela passa e com ela toda a grandeza do teatro, da arte de representar papéis, de chorar lágrimas verdadeiras por emoções inventadas, de rir risos loucos para restaurar nossa razão e nossa crença na possibilidade de que a humanidade dê certo, já que existem as atrizes.

E então acontece! Ela passa e, contrariando as minhas expectativas, satisfaz meu desejo pousando delicadamente, por uma fração de segundos, os olhos em mim. Sobe as escadas, vira-se e, como Nilda e diferente dela, contempla seu reino vazio e cheio do ruído dos aplausos de uma platéia eternamente grata. E segue carregando a Senhora Y para nunca mais.

Os aplausos trazem de volta as duas, Yumara e Nilda, despidas de tudo, em seus trajes branco e vermelho, só para, generosamente, nos mostrar que sem seus personagens elas são mais fortes ainda, porque tem muito mais a dar.

SSA, 01/06/97
Marcio Meirelles

1.5.11

JOSEFINA, A DOS RATOS

Em 1990 montei Josefina, a cantora dos ratos para a CIT - Companhia de Investigação Teatral - formada por Clecia Queiroz, Yulo César, George Mascarenhas e Nadja Turenko, depois substituida por Tereza Araújo. Era um grupo formado por atores/produtores que convidavam diretores para desenvolver projetos com eles.
A peça foi baseada no conto Josefina, a cantora ou o povo dos ratos, escrito por Kafka em 1924 (que recomendo seja lido sempre).
Em 1997 revi o artigo que escrevi para o programa da peça e ele foi publicado no jornal Soterópolis.
Quando montei Josefina, meus filhos tinham 5 e 6 anos. Quando revi o artigo, eram adolescentes. hoje são jovens adultos.
Aí está o artigo.
George Mascarenhas - 
- um das "Josefinas"

ACHO QUE ESTE NÃO É UM TEMPO
DE METÁFORAS
Acho que este não é um tempo de metáforas. É um tempo real em que é necessário falar, tomar posições. É um tempo em que o artista é necessário mais do que nunca. Em que o artista tem que assumir a sua condição de arauto, de instigador, de antena parabólica, captando e colocando no ar o dia a dia que é mais fantástico e dramático do que a mais fantasiosa imaginação possa criar.
É preciso colocar esse personagem em cena - o artista - e discutir sua fragilidade e sua grandeza, suas possibilidades e seus delírios, suas carências e pirraças, seu poder de sedução e a real necessidade que tem dele uma sociedade em crise. Mas é preciso que se faça isso com uma visão crítica, não com excesso de vaidade e amor próprio inflamado. Talvez com muitas dúvidas a nosso próprio respeito.
Acho que neste momento a palavra se faz necessária, a discussão, a descoberta de novos caminhos para a felicidade geral.
Este é um tempo sem ideologias, sem causas, um tempo em que o poder supremo de duplicar a vida foi conquistado. Em que a gente perde o interesse em acompanhar as notícias sobre crimes monstruosos contra o cidadão porque já se sabe o fim da história. Um tempo em que os clones e a impunidade ocupam lado a lado as notícias dos jornais.
É um momento muito difícil, um momento terrível. Todas as antigas crenças e certezas estão desmoronando. E as novas não respondem às imensas questões que me colocam meus filhos pelo simples fato de existirem, crescerem, serem humanos e terem um futuro absolutamente imprevisível pela frente.
Eu tenho tantas dúvidas e tantas questões quanto meus filhos adolescentes.
A única coisa que penso no momento é: algo tem de ser feito. Temos que abrir caminhos novos. E temos muito pouco tempo.
     Venho construindo, com todas essas questões e desafios, um caminho para mim, não uma resposta. Não precisamos de respostas, precisamos de uma saída. A saída para mim é o teatro, esse jeito coletivo de se construir coisas novas e refazer velhos sonhos, essa forma única de estar em convívio com outros homens, de gerar e resolver crises, de dizer coisas antigas de uma maneira única e viva e efêmera. Essa única forma e ato de amor.
15-03-97