29.8.11

À NOUS LA LIBERTÉ

Em 1976 fiz uma exposição de desenhos no ICBA, intitulada À nous la liberté.
 Escrevi esse texto como base para o release de divulgação.
abertura da exposição
1.
Eu nasci há muito tempo, não sei bem onde. Sei que meus desenhos mais antigos, que tenho guardados, foram feitos aos cinco anos. Provavelmente comecei bem antes. Antes mesmo de nascer. Comecei brincando e brincando continuei. Experimentei muito e de repente aprendi a dar sentido a essa brincadeira. A brincar outra vez com a mesma seriedade dos cinco anos, quando brincar era a única coisa realmente importante. E quando isso aconteceu foi o princípio do meu reencontro. Passei dois anos trancado num útero refazendo a vida e, em 1975, finalmente saí do ovo. Rompi a casca e me atirei ao mundo pra mostrar a minha brincadeira: brincar com o mundo.
“Venha rever a cidade que a festa continua. Se embriague no meu sangue”1 – Assim foram convidados e assim compareceram e assim se embriagaram. Mostrei tudo. As entranhas. Meu lixo ocidental.
  • Uso o lixo pra fazer o meu trabalho. Vomito tudo o que como: o café da manhã, o dia a dia, e tudo que vejo na rua nas minhas andanças sem pressa.
  • Uso o que mais me convém pra expressar o que quero. Sou um pintor sem estilo.
  • Acho que as coisas devem ser todas misturadas.
  • Se arte é vida, o espectador deve estar no centro.
  • “Pedaços de objetos velhos, recortes de jornais e outros materiais do gênero constituem os elementos que Marcio utilizou em seus trabalhos de colagem e arte ambiental.”
  • “Marcio, que pinta, desenha, faz ambientações, escreve poesia, cria coreografias e encenações é, enfim, o que um artista hoje deve ser.”
  • “Marcio tem muitas ideias, sendo sua qualidade maior a fidelidade aos seus princípios, que impede que se perca em floreios inúteis.”2
“Venha rever a cidade que a festa continua...” – Assim foram convidados e assim compareceram. “Um bruxo cigano contou...”
Desprendeu-se outro módulo da nave e parti por outra estrada que me levou a outros mares. Ao palco, à passarela, à tela.
E o espetáculo continuou.
Eu não trabalho em termos de quadro porque quadro é uma coisa parada e sou muito irrequieto. Trabalho em termos de espetáculo mesmo. Meu trabalho é uma fração de tempo entre um antes e um depois. É um momento da história que não começa nem acaba ali. Mas a partir desse momento pode-se descobrir o que virá e o que passou. Por isso me interesso muito por história em quadrinhos que é uma forma de fazer teatro sem atores e cinema sem dinheiro. Que é uma linguagem única, própria, forte e brilhante de brincar e contar histórias.
Recolhi-me outra vez e a partir de história em quadrinhos, publicidade e o art nouveau, descobri o traço. A linha.
Agora, com uma linha pura, limpa sobre fundo branco, um certo toque de humor, um risinho entre dentes, conto histórias. Histórias de terror tecnológico. Este terror feérico que não tem nada a ver com a morbidez do gótico. Alguma coisa como a angústia deste século, alegre, divertida, colorida. Com o peito de plástico, a boca de acrílico e os braços de neon nos atrai, encanta e amedronta.
Um dia, no hemisfério norte da América, declararam independência. Independentes, ditaram sonhos, cresceram medos e resolvi comemorar 200 anos. Descobri então, festejando, que seus símbolos não são seus, são do mundo. São meus. Escrevi: À nous la liberté – desenhos para colorir. Alguns desenhos publicitários que contam como nos oferecem situações ideais, como nos mentem, como os objetos declararam independência e controlam os destinos do homem. E vou mostrar isso com coca cola e cachorro quente. E depois, quando estiver entupido de coca cola, vou seguir viagem. Pra onde, não sei. Sem compromissos. Por sete mares, sem navio. Talvez vá pra hollywood plantar um pé de araçá.

2.
À nous la liberté – desenhos para colorir
Neste ano em que se comemora o bicentenário da independência dos Estados Unidos da América, tive uma ideia – Vamos festejar. Comecei a contar História, a história da independência dos objetos, criados inicialmente para servir ao homem, mas que, com o correr do tempo, ganharam dimensões inesperadas e começaram a comandar o espetáculo.
Organizei meu caos. Apaixonei-me pela linha pura sobre grandes espaços em branco – para colorir – e comecei a reinventar a publicidade oferecendo uma situação ridícula contra cada situação ideal que me apresentam no vídeo, nas revistas coloridíssimas, nos out door. Deixei a cor aos cuidados do cliente que tem livre arbítrio mental para usar a que melhor lhe convier.
Abandonei a tragédia e ofereço a tragicomédia. Rindo é mais fácil engolir as coisas. Rindo e cantando. E sorrio entre dentes enquanto me debruço no papel para fazer os meus rabiscos de terror tecnológico. Rabiscos muito bem feitos, por sinal.
Escolhi a língua inglesa para dar título aos desenhos pelo que ela tem de onomatopéico, de universal, de tecnológico, de hollywoodiano. De óbvio: por que falar outra língua, se inglês é a língua dos objetos? Eles falam off – on – stop – start – etc. Então por que falar outra língua, quando a corrente é esta? Depois, nos USA se fala inglês, sabia? E eles comemoram 200 anos de independência, sabia?
Essa história dos objetos não começa nem acaba aqui, nos desenhos. Não sei onde começaram nem onde vão acabar. Talvez ainda faça uma centena mais, talvez acabe aí. Talvez eu pudesse contar essa história com somente um, mas preferi fazer esta série que será vista, ou não. Não precisa ser vista, porque todo mundo vê TV ou pelo menos já viu uma revista ou um outdoor. E basta ter um pouco de cabeça pra saber que tudo que se diz é mentira, que as situações ideais são ridículas e que os objetos não vão salvar ninguém. Muito pelo contrário. É isto que digo nesta exposição. Gargalhando.

1Texto do convite da primeira exposição individual: Um bruxo cigano me contou. (1975, foyer do Teatro Castro Alves, Salvador/BA).
2Citações de artigos de jornal, quando da exposição mencionada.

28.8.11

OSBA – 5º ANIVERSÁRIO - 1987

No quinto aniversário da OSBA - Orquestra Sinfônica da Bahia -  escrevi este texto para o programa do concerto comemorativo. 
Agora, a Osba se debate ante o dilema: ser publicizada ou não. Li uma entrevista com o novo diretor, Carlos Prazeres, onde ele dizia que 10% dos músicos da orquestra trabalham contra. Por que sempre os que não querem esperneiam tanto? 
Tive um debate com eles sobre esta questão. E pude perceber a presença desses 10%... No fim das contas, quando os poucos já não tinham mais argumentos contra a administração da OSBA passar para uma oscip, quando tudo estava claro e todos os direitos e estabilidade garantidos, um deles saiu com essa: sou contra a publicização por ideologia. E ponto. ideologia sem argumentos pra mim é fundamentalismo. Longa vida para a OSBA.
De qualquer forma, esse texto de aniversário, é uma celebração da beleza que uma orquestra produz.

Carlos Prazeres, diretor artístico, e sua OSBA
A primeira vez que assisti a “Ensaio de Orquestra” de Fellini, pensei: “que bela metáfora sobre o funcionamento do homem”.

Eu não conhecia de perto uma orquestra. Somente me sentava numa poltrona e assistia a concertos, ou ouvia gravações.

Depois, comecei a conviver com o cotidiano, com os ensaios, com os problemas, com os músicos de uma orquestra. Descobri que o “Ensaio” cinematográfico é mais que uma metáfora, é um documentário, um retrato de um grupo de pessoas muito especial.

O universo de uma orquestra, o universo interno, que o público desconhece, é como o filme: uma orquestra não é um todo, são partes, partes desconexas, partículas distintas como gotas de óleo boiando numa poça d’água. Uma orquestra não é um conjunto de músicos, é cada músico e seu instrumento, com quem ele desenvolve uma relação única, íntima, carnal, feita de contato, de aconchego, de identificação, de mimese. Um instrumentista é um pouco seu instrumento, é quase ele, são quase uma coisa só. Um violinista é quase seu violino, assim como uma harpista é quase sua harpa.

A diferença entre os instrumentistas e seus instrumentos está na afinação. É mais fácil que coisas distintas como uma tuba e um flautim, um oboé e um contrabaixo, consigam o mesmo tom, a mesma nota, do que os instrumentistas entre si. Todas as questões pessoais, estéticas, sindicais, econômicas, políticas, metafísicas, os impede - ou pelo menos atrapalham muito - de chegarem juntos ao mesmo diapasão.

E assim, desarmônicos, dissonantes, se agrupam não num todo, mas numa espécie de monstro, de animal antidiluviano a um passo da extinção.

Correndo sempre o risco de que uma enorme bola de ferro comece a demolição da sala de ensaios e seja instaurado o caos explícito.

Mas existe a música.

Quando os músicos de uma orquestra sentam-se em frente às suas estantes, quando, juntos dão início ao concerto, faz-se a mágica, faz-se a luz. Todas as gotas de óleo se juntam e criam arco-íris sobre a água, o monstro antidiluviano se transforma num enorme barco e qualquer ameaça de extinção se acaba, porque só uma orquestra contém a possibilidade desta mágica.

Então temos certeza de que existe mais do que aqui-agora, temos certeza de que o mundo é maior do que nosso quintal, de que é possível alterar a ordem errada das coisas, de que esta possibilidade está na mão de um instrumentista, de um homem comum que apenas aprendeu seu ofício e o executa bem, buscando nada mais que ser um homem que tem um ofício e o executa bem e assim está próximo e unido a um outro homem que aprendeu seu ofício e o executa bem.

Existe a música. E, por isso, existe a mágica. Quando uma orquestra começa a tocar, temos a certeza de que o homem um dia roubou o fogo do céu, e tudo é possível.

27.8.11

ENTREVISTA PARA O BLOG ENFOQUE CULTURAL


ALYSSON ANDRADE - Sei que você sempre teve posições contrárias em termos políticos à época do “Carlismo”. Infelizmente vivemos num país onde a “politicagem” impera. Você sofreu algum tipo de retaliação por conta dessa postura, já que também dependia de verbas públicas para manter, por exemplo, o Teatro Vila Velha?

MÁRCIO MEIRELLES – Creio não ter sofrido nenhuma retaliação, mas também nunca tive privilégios. Sempre fui independente, em minhas posições políticas e estéticas. Acontece que o trabalho de revitalização do Teatro Vila Velha tinha uma dimensão muito maior, inquestionável, e qualquer dirigente de cultura à época tinha que reconhecer a importância disso e, pelo menos, chamar o Vila pra uma conversa. Foi o que aconteceu. Paulo Gaudenzi, secretário de Cultura e Turismo à época, nos chamou para conversar e oferecer apoio. Na conversa ele disse uma frase, que ouvi dele outras vezes: “meu pai me ensinou a não deixar passar cavalo selado, sem montar”. Creio que foi isso: o Vila era um “cavalo selado”, um projeto que daria certo e que traria frutos pra quem estivesse junto. O Estado queria estar junto. Mas no nosso entendimento não só “queria”, tinha a obrigação de estar junto. Então, apesar de não termos ido lá pedir nada – quando entramos no Vila, decidimos que íamos tocar aquilo do jeito que estava e ir fazendo e transformando ao fazer – aceitamos porque entendíamos que o Vila é um patrimônio nacional e nosso trabalho, não era pra nós, era público. E já ouvi e vi muita gente surpresa ao saber que o Vila não é um teatro do governo. É isso: o Vila é um teatro público, porque serve à população. Dando acesso às produções mas também, e principalmente, aos meios de produzir.
Devo aqui dizer duas coisas sobre isso. Louvar a atitude de Paulo Gaudenzi, em apoiar um grupo e um projeto que não se alinhavam à política partidária da qual ele era parte e nunca ter cobrado nem direta nem indiretamente alinhamento ou apoio. Portanto, em relação a nós, agiu republicanamente.
Segundo, que o governador Jaques Wagner, ao me convidar para assumir a Secult, e ter como resposta que eu achava uma tarefa muito grande, ele me disse que fizesse o que fiz com Vila em escala de Bahia. Foi o que fiz. Democratizei, distribui, compartilhei.

“O Vila é um teatro público, porque serve à população.”

AA - Sabemos que nem sempre os discursos interagem de fato com as ações. Em minha opinião, principalmente a questão da descentralização do apoio público ao interior baiano de fato funcionou, embora com algumas observações ao processo. Enquanto gestor público, Você acha que atingiu seus principais objetivos a frente da política cultural estadual?

MÁRCIO MEIRELLES – Minha expectativa era muito maior, é claro. A gente sempre pensa em mudar o mundo (risos). Mas administrar a coisa pública é uma negociação. Primeiro com você mesmo: “tá legal, meu amigo, você não vai conseguir tudo, do quê é que abre mão?” Essa é a pergunta que você se faz diariamente. Depois, você não trabalha sozinho, faz parte de várias equipes. A sua mais próxima, o gabinete, os assessores; uma maior: os dirigentes dos órgãos vinculados. Outra maior ainda: todo o executivo, os outros secretários, o próprio governador, o orçamento do Estado que define suas prioridades. Tem as regras do jogo, dadas pela legislação; os órgãos reguladores: Procuradoria, Auditoria Pública, Tribunal de Contas, Ministério Público... Tem o Legislativo. Tem a imprensa, a mídia... E boa parte desse elenco é ou se considera representante e porta-voz da sociedade, que é de fato pra quem você trabalha.
Ora, então seu desempenho depende muito de vários fatores. A estrutura que você tem é decisiva. A Secretaria de Cultura estava sendo criada. Mas o que houve de fato foi um desmembramento de uma secretaria e a SECULT continuou praticamente com a mesma estrutura montada para ser apenas uma parte da antiga Secretaria de Cultura E (um e fundamental) Turismo, consequentemente pra dar conta de parte de suas atribuições, e para atender a um público restrito – a uma categoria e a um território – o produtor cultural da capital. Evidentemente estou simplificando. A antiga secretaria tinha programas e projetos que atendiam o interior e outros setores. Mas não como ações programáticas. Bem, quando entramos e fizemos a máquina se mover para todos os territórios do estado, para vários setores que não eram atendidos e para a população, evidentemente a sua fragilidade ficou evidente e ela emperrou em vários momentos.
Aí vem outro fator fundamental: a equipe que você tem. E tive uma equipe brilhante. Com excelentes profissionais, pensadores e atuadores da área da cultura e da gestão pública. Pessoas apaixonadas e comprometidas, dispostas a dar tudo pra executar suas tarefas pra que atingíssemos nossa meta, a ponto de sermos criticados como voluntaristas... Brincávamos que nossa meta era dominar o mundo (risos). E a resposta era: se a cultura não dominar o mundo, o mundo vai ser dominado pela barbárie.
Mas também essa equipe era assimétrica. Pessoas com um entendimento muito claro do que estava sendo proposto e capacidade para executar. E outras nem tanto. Que faziam leituras muito personalistas do que é ser democrático e republicano. De qual é o papel do Estado. Do que é uma política republicana, como o governador sempre nos cobrou, a nós secretários, e o que é política partidária... Qual o papel do mercado, e sua importância. E a importância do Estado fomentar a existência existência e crescimento desse mercado como parte de uma política de sustentabilidade de determinado setor. O livro, por exemplo: fomentar um parque editorial é importantíssimo para o desenvolvimento das políticas de livro e leitura. Entender o papel das redes criativas e produtivas, ajudar a sociedade a estruturar e consolidar essas redes... enfim.
Convencer o Estado de que também é preciso mudar a cultura política e a cultura do desenvolvimento, entendendo a cultura como um investimento neste desenvolvimento e não como um gasto supérfluo diante dos “necessários” em educação, saúde e segurança pública... Conseguir mostrar que o investimento em cultura é prioritariamente um investimento em educação, saúde e segurança pública... Para isso é preciso também convencer a sociedade de que não se combate a violência apenas com armas mas com livros, com jeitos novos de encarar os problemas... Mas dependíamos de que os artistas entendessem essa dimensão do Estado e da Cultura. E não continuassem encarando o Estado apenas como mecenas ou patrocinador de suas atividades por si; que o centro das políticas de cultura não são os artistas, mas o povo. E que é pra ele que todos trabalhamos. É ele que paga e justifica nossas atividades, se são necessárias. Leva tempo, e tem a ver com educação também, a construção da percepção dessa necessidade da arte, do que ela traz de benefício e de avanço, não apenas gerando empregos e economia – um fator importantíssimo e que não deve ser ignorado – mas cidadania, sentido de pertencimento e compromisso, uma complexidade crítica de pensamento que nos ajuda a entender e a nos apropriarmos das realidades, cada vez mais complexas, que vivemos.

“Se a cultura não dominar o mundo, o mundo vai ser dominado pela 
barbárie”.

AA - Em discurso final, de transmissão do cargo no início de 2011, você declarou: “Tive que pular muitas poças de lama”, referindo-se ao período em que foi secretário. Quais as principais dificuldades que você encontrou para gerir a Cultura Estadual?

MÁRCIO MEIRELLES – Tem uma coisa muito importante pra se levar em conta: sou um artista. Há 39 anos tenho esse ofício. Sendo artista, sou primeiramente um ser político: ou seja um cidadão que discute o poder, as regras, as convenções, os ritos, as possibilidades, as mudanças necessárias, as tradições que devem ser preservadas, a história e seus efeitos e suas possibilidades; que reflete o outro, suas fraquezas e méritos e potencialidades... Nunca fui filiado a nenhum partido, porque não acho que seja a melhor maneira de se conduzir as coisas, não acredito que isso tenha evoluído no sentido de que, de fato, os partidos representem ideias e programas de uma parcela da sociedade e que essa parcela escolha esse ou aquele candidato pelos partidos porque estes são seus representantes. Creio que as coisas funcionem de forma diferente.
Fui publicamente anunciado como uma escolha pessoal do governador e não uma indicação partidária, imagino que ele sabia que uma escolha partidária para a pasta recém-criada, naquele momento, significaria a implantação de uma política comprometida com os interesses do partido do gestor e não a implantação de uma política republicana e nova para a Bahia, como ele desejava. E talvez intuísse que só um artista poderia enfrentar criativamente as dificuldades que encontraria.
O fato é que aceitei. Porque tinha ideias, propostas, formuladas durante esses quase 40 anos de atividades. E porque sempre cobrei do Estado a postura que Wagner representava e representa. Acreditava e acredito na sua integridade e no programa político que vem implantando na Bahia, mesmo com todas as negociações que é obrigado a fazer pra gerar a necessária governabilidade num estado tão fragilizado por 44 anos de um mesmo grupo no governo e que construiu sua permanência no poder até agora. No poder econômico, midiático... E aceitei também por uma escolha pessoal. Porque era Wagner, com quem não tinha, ao contrário do que muita gente pensa, nenhuma relação pessoal, mas uma admiração muito grande pelo papel político que vinha desempenhando no Brasil e por alguns encontros com ele, como Ministro do Trabalho, para tratar de projetos do Teatro Vila Velha.
Portanto, resolvi me afastar de minhas atividades artísticas durante quatro anos – e de minhas sandálias havaianas (risos)... é sério, deixar de usar sandálias havaianas publicamente e encarar terno e gravata, pra nós que fazemos arte, teatro, e que lidamos com símbolos e significados, é muito. Bom, o apoio político que poderia ter era o da categoria. Como tive dos municípios, de seus produtores e gestores culturais, de seus habitantes... E essa foi de fato a força da SECULT nesses quatro anos. As políticas para o interior fizeram aumentar o percentual orçamentário para a cultura, convenceu parlamentares e executivos de muitas das coisas que queríamos demonstrar acerca do papel do Estado em relação ao setor. Mas, infelizmente, a história e consequentemente a cultura baianas não permitiam que isso (o papel do Estado) fosse internalizado plenamente, e na hora das discussões e da divisão do bolo e da atenção política sobre as atividades e setores da sociedade, o governo – não falo do governador – acabavam não reconhecendo plenamente o papel da cultura pra o desenvolvimento e não eram considerados necessários, ou pelo menos tão necessários, a criação de estrutura para a SECULT e o investimento na área.
E, parte – digo uma parcela bem pequena mesmo – dos artistas de Salvador, não aceitaram as mudanças propostas e efetivadas e, com todos os microfones, câmeras e espaço na imprensa com que sempre contaram, deixaram passar a oportunidade de ter um de nós no governo, para dialogar e juntos, resolvermos questões muito antigas que não seriam resolvidas em apenas quatro anos, principalmente com o embate que se travou com esses poucos amplificados. E quero registrar aqui uma coisa: nunca chamei esses poucos de ex privilegiados nem de viuvas do carlismos. Porque sei que todos os artistas ralam muito pra serem artistas e não acredito que essas viuvas existam. O carlismo é a personalização de uma atitude reacionária que o baiano tem, principalmente suas elites. E falo aqui de todas as suas elites: política, acadêmica, intelectual, econômica, negra, midiática, artística... Antônio Carlos Magalhães soube aproveitar esse traço de nossa cultura para colocar e manter no poder parte dessas elites, que tomaram seu nome para designar essa tendência brasileira e potencializadamente baiana de manter as coisas como são, de confundir público e privado, de construir a fama em cima da difamação dos outros, de invejar o sucesso ou melhor, o sucedido. De impedir mesmo que as coisas mudem, somente porque essas mudanças ameaçam sua estabilidade. E isso é parte de nossas contradições, dos paradoxos de nossa alma barroca. Porque, ao mesmo tempo, somos inventores, assimiladores antropofágicos de tudo que é novo... cosmopolitanos e provincianos ao mesmo tempo. Revolucionários e reacionários. E não me excluo disso.

“Deixar de usar sandálias havaianas publicamente e encarar terno e 
gravata, pra nós que fazemos arte, teatro, e que lidamos com 
símbolos e significados, é muito.”

AA - Percebo que você contou com uma equipe técnica muito capaz no período em que foi secretário. Algumas figuras que colaboraram com o processo de territorialização da cultura durante a sua gestão, com a entrada de Albino Rubim, deram lugar a novos profissionais que já promoveram algumas mudanças, como por exemplo, a substituição de alguns Representantes Territoriais. Na sua avaliação, até que ponto as mudanças na gestão não comprometem a consolidação das políticas públicas para o setor cultural?

MÁRCIO MEIRELLES – Como falei antes... queremos e tememos mudanças. Por acaso, neste ponto, sou menos baiano (risos). Creio que as mudanças são necessárias. Se eu mesmo continuasse – e, inclusive, essa seria uma condição para eu continuar – faria algumas mudanças na equipe, talvez até mais radicais do que as que estão sendo feitas. Como não estou acompanhando muito de perto o que está acontecendo, não sei, por exemplo, que representantes territoriais foram mudados. Sei os cargos mais visíveis, os gestores das vinculadas e não muito mais. Mas creio que as mudanças têm propósitos coerentes com uma segunda gestão do governo Wagner. Temos que esperar pra ver os resultados.

AA - Qual a sua expectativa para a gestão da Cultura no Estado da Bahia, atualmente conduzida pelo seu sucessor, professor Albino Rubim?

MÁRCIO MEIRELLES – A melhor possível. Depois da reeleição do governador, assim que pudemos nos encontrar, levei a ele os três desafios da cultura para sua segunda gestão: haver mais interseção entre as políticas e os programas das Secretarias de Cultura e de Educação, sem o que, não acredito possa haver mudanças significativas no desenvolvimento da cultura na Bahia; segundo, montar um programa para a Copa que beneficie a cultura baiana, principalmente no que diz respeito ao patrimônio material e imaterial e às industrias criativas, porque uma cultura, como a nossa, num evento como a Copa tem muito a ganhar com criação ou construção de tecnologias e produtos que gerem royalties e, consequentemente, economia. E o terceiro desafio é o de consolidar o que foi construído na primeira gestão, em termos de processos e programas. No mesmo encontro externei a minha intenção de não continuar na pasta.
Me preparei para quatro anos. Esse foi o prazo que dei pra mim e pra minha vida pessoal, também pro Bando, pro Vila, pras minhas criações. E quatro anos foi muito. Pelo que mudou no mundo e na Bahia e pelo que mudou com o Bando e com o Vila. O governador, depois de um tempo, me chamou pra comunicar que Albino, indicação do PT, seria o próximo secretário de Cultura. Fiquei muito feliz. Primeiro porque Albino foi presidente do Conselho de Cultura. Ele conhece bem a área e sabe os pontos fracos e fortes da SECULT, porque acompanhou sempre com uma postura crítica muito boa toda a nossa gestão.
Depois pelo fato dele ser indicação de um partido. Isso mostra a força que a pasta adquiriu e dá a Albino uma sustentação necessária para conseguir coisas que são mais difíceis quando você não tem.
O que vejo, nesta segunda gestão do governo Wagner, é a possibilidade de uma revisão do que vinha acontecendo, e a afirmação de uma política que, como disse diversas vezes, é política de governo e não pessoal. Vejo o avanço e colheita em algumas áreas que já estavam plantadas, novas semeaduras em terras já adubadas e também o trabalho de arar e preparar alguns terrenos onde não pudemos chegar, pra que talvez essa ou a próxima gestão possam semear e alguém colher. Assim é a gestão pública.

AA – O avanço nas políticas públicas culturais implantadas em Jequié (2009-1010), com a publicação de editais municipais e a construção dos elementos que integram o Sistema Municipal de Cultura, foi citado por você em diversas ocasiões públicas enquanto Secretário Estadual de Cultura. Atualmente, a gestão do setor cultural local tem sido fortemente criticada por artistas e produtores devido à interrupção dos investimentos e a ausência de uma política cultural definida. Como você avalia a possibilidade de um retrocesso?

MÁRCIO MEIRELLES – A possibilidade de retrocessos sempre há. E sofremos todos com isso. É um dos resultados da parte perversa das questões partidárias de que falei. Sei que foi feito um trabalho muito bonito em Jequié. Isso acompanhei e falei publicamente diversas vezes. Agora, estou meio longe e não posso avaliar o que está acontecendo. Seria leviano de minha parte. Mas a cultura de Jequié é muito rica e o potencial que ela tem para ajudar o desenvolvimento do município é imenso. Espero que o prefeito daí, assim como os de todos os municípios, inclusive de Salvador, e os futuros, tenham a sensibilidade de perceber que o investimento em cultura é um investimento em desenvolvimento.

“Espero que o prefeito de Jequié, assim como outros prefeitos 
futuros, tenham a sensibilidade de perceber que o investimento em 
cultura é um investimento em desenvolvimento”.

AA – Na maioria das vezes, pessoas com problemas pessoais fazem criticas a um gestor público a todo o tempo. Transformam antipatia pessoal em problemas políticos, e então é iniciada uma “campanha contra”. Principalmente a partir da descentralização do apoio publico ao interior baiano, como foi conviver durante alguns anos com os manifestos públicos da conhecida turma do “Meu pirão primeiro”?

MÁRCIO MEIRELLES – Foi duro. Foi muito mais duro talvez por serem pessoas com quem convivi e convivo, pessoas pelas quais tinha afeto e admiração profissional ou artística, com as quais trabalhei, com quem colaborei em diversos processos criativos que nos engrandeceram. O mais duro era não me reconhecer nos olhos dessas pessoas. Era incrível. Aparentemente eu era outra pessoa, com outra história. Parecia que eu tinha nascido de terno e gravata. Era como se minha história tivesse começado em janeiro de 2007. Muitas vezes chamei ou cheguei junto pra conversar e era como se fôssemos outras pessoas. Como se o gestor público tivesse anulado o artista que viveu tudo aquilo que eu mesmo me dizia que deveria ser solucionado. Mas fiz o possível e o melhor. Creio que estamos colhendo frutos e que a Bahia mudou. Talvez não o tanto que eu gostaria, ou que seria necessário. Mas o suficiente pra produção cultural, se continuar nesse rumo, andar com as próprias pernas, sem a tutela e dependência (quase química) do Estado

AA – Pra finalizar, fale um pouco dos seus projetos aos leitores do blog “Enfoque Cultural”.

MÁRCIO MEIRELLES – Meus projetos são muitos. Mas como faço 40 anos de vida pública como artista em 2012, meu principal projeto é juntar os vários marcios que fui durante esse tempo: artista visual, performer, fotógrafo, encenador, escritor, dramaturgo, militante, gestor, o Bando, o Avelãz y Avestruz, o TCA, o Vila Velha... Quero fazer livros, sites, blogs, peças, exposições com tudo isso (risos). Tenho revisto as coisas que fiz, disse ou escrevi e vejo uma coerência muito grande em tudo, inclusive na minha gestão como secretário de cultura da Bahia.
http://tinyurl.com/3fqovu2

16.8.11

O EXCELSO MAR DE ZÉ

HOJE O BRASIL CELEBRA OS 50 ANOS DO OFICINA UZYNA UZONA .
Mando aqui um poema-letra-de-música que fiz com
jarbas Bittencourt para homenagear Zé Celso, há algum tempo:

EVOÉ! AXÉ!

DIONÍSIO BRASILEIRO
JOSÉ DE EXCELSO MAR

TIRA AS CORREIAS DE CENA
ARRANCA A FELICIDADE
DO BAÚ ONDE METERAM
AURIVERDE COR DE ANIL
A ALEGRIA ENCARNADA
DO VERBO SOLTO NO CIO

GOZA PRA NÃO CHORAR
COM A FALTA DE VERGONHA
DESTA PÁTRIA MÃE GENTIL
GOZO SOLTO PELO AR
AXÉ ZÉ DE EXCELSO MAR
DIONÍSIO DO BRASIL

DITIRAMBOS
PRA CANTAR
DITIRAMBOS
RUMBAS MAMBOS
FOX SAMBAS
ROCKS REGGAES
RAP RAP RAP ZÉ
EVOÉ AXÉ AXÉ
SALVE O EXCELSO
MAR DE ZÉ

COM O PODER QUE TEATRO TEM
ESPALHA O PRAZER PELO AR
LIVRE LIVRE A MÃO CHEIAS
E DEIXA O POVO GOZAR
ZÉ NOSSO QUE ESTÁS NO PALCO
DIONÍSIO EXCELSO MAR

6.8.11

O TEATRO DO BANDO E AS TECNOLOGIAS

Há 20 anos, na Bahia, Chica Carelli, outros artistas e eu criamos um grupo que se mantem ativo até hoje: o Bando de Teatro Olodum. Sou responsável pela maioria de suas encenações. Nelas temos perseguido a construção de uma dramaturgia que dê conta de nossas questões.
No início de nosso trabalho, adotamos a tradição oral como modelo. Nossas peças eram “escritas” oralmente. Eu propunha temas, provocava improvisações, “editava” as falas ao vivo, ia tirando coisas e colocando frases à medida que os atores repetiam a cena já selecionada para fazer parte do espetáculo. Montava esquematicamente um roteiro com a sequência das cenas, experimentava no próximo ensaio... As falas iam sendo construídas e memorizadas assim. Às vezes eu ou um dos atores escrevíamos e trazíamos propostas de diálogos. Eram experimentados. Íamos assim até que eu dava a forma final com a colaboração de Chica Carelli, que co dirige os espetáculos comigo e dirige os seus próprios.
Onovomundo - foto: Isabel Gouveia
Mas atores insistiam em montar uma “peça de verdade” – ou seja, escrita e publicada. E montamos WoyZeck, de Büchner – texto que dialogava com nossa dramaturgia e falava da classe trabalhadora: nós. Depois de WoyZeck, vieram outros criados oralmente que eram intercalados com clássicos da dramaturgia universal.
WoyZeck - foto: Isabel Gouveia
A montagem de textos como a Ópera de três vinténs ou Medeamaterial, para além do desejo de todo ator e encenador de poder mergulhar nesses monumentos, é um exercício e pesquisa para a criação de nossas próprias formas narrativas e uma atitude política de “pintar” de negro a dramaturgia universal.
Em 1995, fomos convidados a publicar nossas peças que tratavam da comunidade do Centro Histórico de Salvador, na Bahia: a Trilogia do Pelô. Tínhamos patrocínio para isso. E aí tivemos que definitivamente usar a tecnologia da escrita e da edição. Publicamos o livro. Depois disso todas as peças que criei em colaboração com o Bando foram escritas “de verdade”, à medida que eram criadas, e publicadas no programa do espetáculo.
Medeamaterial - foto: Isabel Gouveia
No início, quase não utilizávamos cenários ou iluminação para poder circular facilmente pelos subúrbios, escolas, quadras de centros comunitários e também em teatros, em busca de nosso público. Além do quê, não tínhamos recursos mesmo para isso. Em WoyZeck, como “texto de verdade”, a necessidade de cenário e iluminação era inerente à narrativa. A partir de sua montagem, tivemos grandes colaboradores nas duas áreas.
Finalmente, o som. Sempre usamos a música ao vivo. Inicialmente baseada no binômio canto/percussão – como nos terreiros de candomblé e nos tradicionais desfiles de carnaval dos blocos afro. Depois começamos a utilizar outros ritmos e instrumentos. Isso nos levou à uma pesquisa de amplificação sonora que teve seu mais sofisticado projeto em Sonho de uma noite de verão.
Sonho de uma noite de verão - foto: João Meirelles
Na montagem do sonho shakespeareano, queríamos falar do amor e nos apropriar do texto, em sua íntegra, mas de nossa forma: em nossa língua e linguagem. Transformar o midisummer britânico no verão baiano, era colocar os eventos durante nosso carnaval, a maior festa negra pública brasileira.
Descobrimos os ritmos do carnaval baiano correspondentes aos dos versos da peça e à natureza de cada personagem. Assim, os atores falam acompanhados de tambores, guitarra, baixo elétrico e cavaquinho que tocam ijexá, samba reggae, galope, arrocha, samba ou rap: o rítmo de cada um. Foi necessário um sofisticado desenho de som para que as vozes dos atores sejam ouvidas acompanhadas pelos tambores e não soem falsas – como dublagem – com a fonte sonora espacialmente distante do corpo emissor do som. E mais: que a alternância entre som amplificado e som acústico não seja perceptível aos ouvidos da platéia.
O uso da tecnologia de som, foi absolutamente necessário para a realização do objetivo estético da montagem.
Assim, levados por necessidades narrativas específicas, chegamos ao uso das tecnologias tradicionais do palco: escrita, cenário, iluminação, sonorização.

TRÊS EXPERIÊNCIAS COM OUTRAS TECNOLOGIAS E NOVAS NARRATIVAS
Bença - foto: João Meirelles
Bença: o tempo passado e o tempo presente.
O trabalho comemorativo dos 20 anos do grupo chama-se BENÇA. É um tributo à tradição, ao poder do tempo e aos mais velhos. Mas é um espetáculo/instalação que usa a tecnologia como parceira dos atores em cena.
Experimentamos algumas ações na internet. Colocamos trechos de ensaios gravados, fotos, textos e outras informações no Youtube, em sites, nas redes sociais e no blog do grupo.
Provocamos algumas discussões sobre os temas da peça e inserimos as formas narrativas geradas pelos fragmentos dessas discussões na peça. O próprio nome BENÇA foi (des)construído num debate no orkut.
Depoimentos dos mais velhos – líderes de comunidades afro brasileiras, detentores dos saberes de seus coletivos – foram registrados em vídeo: são o tempo passado, falando para o presente. Tanto no assunto como no modo. O que eles dizem já foi dito, gravado, editado e é reproduzido por um sistema de três projetores comandados por um programa que sincroniza as projeções, a ação ao vivo e as imagens captadas por câmeras operadas pelos próprios atores em cena. Estes, e suas vozes, presentes, dialogam com aquele passado.
Temos portanto, no palco, graças a tecnologias da computação e do audiovisual, o tema do espetáculo explicitado por uma dramaturgia específica, que une diferentes formas narrativas – diálogos, poemas, depoimentos, canções, percussão, coreografia, audiovisual – para falar sobre o papel do tempo e da memória na cultura negra e na construção do futuro.
trilogiaRemix.DOC#aquartapeça - foto: Tiago Lima
trilogiaRemix.DOC#aquartapeça: o teatro documentário – a inclusão do outro real.
Este ano de 2011 marca 20 anos da criação de Essa é nossa praia – a primeira peça da Trilogia do Pelô – e resolvemos refletir sobre o tempo transcorrido tanto para o grupo e suas três peças quanto para a comunidade do Pelourinho, microcosmo sobre o qual nos debruçamos para tratar do tema das desigualdades sociais e geração de violência: racial, de gênero, política e outras.
Pelourinho é o nome de um instrumento/lugar de tortura usado para punir marginais, bandidos e escravos e nomeia, tradicionalmente, um largo de Salvador, onde esteve situado durante os anos do Brasil colônia. Este largo, como vários outros logradores baianos, tem outro nome oficial: o do poeta indianista José de Alencar.
Ironicamente, depois da reforma, promovida pelo governo do Estado, que expulsou 90% da população local para transformar o centro histórico de Salvador num shopping turístico, o nome Pelourinho foi tomado para designar genericamente todo o centro histórico, como uma dupla marca.
O Bando de Teatro Olodum foi criado no ano em que foi eleito aquele governo que promoveu a reforma. A primeira peça montada pelo recém-criado coletivo era para ser apenas o resultado da oficina que gerou o grupo e um estudo de criação de personagens, a partir de representantes da população local (ensaiávamos na Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus). Depois montamos mais duas, formando a Trilogia do Pelô (apelido da área). As três são diferentes momentos do processo de violência cultural que marcou aquela comunidade: Essa é nossa praia, antes da reforma, é um painel humano que mostra o seu cotidiano; Ó paí, ó!, o início da reforma e o extermínio de crianças pela polícia; e, por fim, Bai bai Pelô trata do destino daqueles personagens depois da conclusão das primeiras etapas da reforma, que ainda não acabou.
O projeto que estamos desenvolvendo agora: trilogiaRemix.DOC#aquartapeça, começa a ser construído, de forma colaborativa mais aberta. Além dos artistas que fazem parte do grupo, temos tido, no processo, a participação de fotógrafos, roteiristas, músicos, cineastas e também de moradores do Centro Histórico de Salvador.
Os ensaios estão sendo acompanhados em livestream. Aberto portanto à interação e ao diálogo com internautas. Assim, mobilizamos uma comunidade bastante significativa e interessada em debater questões raciais, de gênero, de exclusão, de violência, a partir do teatro. Mas que, além disso, também que deseja estar em contato com o próprio grupo e, ainda que virtualmente, ser parte dele ou de seu projeto.
Estamos construindo uma narrativa para esse espetáculo, que permita a presença física ou virtual de pessoas ligadas ao Pelourinho e que possam falar sobre ele, mas também sobre o espetáculo. Criticá-lo ao vivo. Estar nele, ser parte dele. Então vai ser construída a possibilidade de coloca-lo em tempo real na internet e sendo projetado em algum lugar no Pelourinho para que as pessoas de lá possam se ver no teatro, através da representação dos atores, mas também como atores de sua própria história, intervindo pessoalmente na narrativa da peça.

Cabaré da RRRRRaça - foto: João Meirelles
Cabaré da rrrrraça: uma experiência de 14 anos colocada online.
Cabaré da rrrrraça é um espetáculo sobre racismo e sobre ser negro. Está em cartaz há 14 anos (estreou em agosto de 1997) e sempre volta a cartaz com grande sucesso na Bahia ou em excursões. Pessoas já viram cinco, dez ou mais vezes. Para rever ou para serem surpreendidos pelas atualizações do texto, alterações no figurino ou substituição de algum ator que deixa a produção.
Na última temporada resolvemos colocar o espetáculo em livestream, como um teste. Planejamos transforma-lo num programa semanal de televisão, fechando um círculo, já que é inspirado em talk shows televisivos. E, como pretendemos que a peça tenha a cada semana um tema inédito inserido, e transmitido ao vivo, queríamos testar como funcionaria.
A primeira transmissão era apenas um teste e duraria uns 15 minutos, mas um dos atores colocou o link da transmissão no facebook alguns minutos antes de entrar em cena. Logo, 17 pessoas estavam online, esperando começar a transmissão. E no chat discutiam entre si a peça, dialogavam com ela e falavam comigo e com os técnicos comentando, agradecendo, orientando e solicitando coisas como aproximação da câmera, ou melhoria no som. Quando dissemos que era só um teste e que logo encerraríamos a transmissão, começaram os pedidos para continuarmos. Além dos “fãs” locais, eram brasileiros negros que estavam na Irlanda, Itália e vários outros lugares, sem a possibilidade de estar presentes fisicamente, e queriam muito ver a peça. Seja porque já tinham visto e queriam rever, seja porque já tinham ouvido falar. Então deixamos até o final. E depois deletamos o arquivo. Teatro tem que ser ao vivo.

Esta experiência nos deu a dimensão da capacidade do teatro e da internet de mobilizar pessoas para discutir algo que lhes concerne, para se divertir, para estar junto com outras pessoas compartilhando a mesma coisa.
Mas para isso, é preciso repensar e reinventar narrativas. Há algum tempo temos trabalhado na construção de uma dramaturgia que dialogue com as novas mídias e suportes e que trabalhe com a dramaturgia das redes sociais. Venho investigando a tempos os roteiros e discursos fragmentados que surgem das discussões nas redes. Vejo aí um rico material dramatúrgico, mas que depende de atores aptos a dialogar no palco com as novas tecnologias, portanto temos que repensar também os processos de formação.
Creio que o diálogo entre tradição e tecnologia seja um dos caminhos – muitos existem – para a construção de um teatro negro. Creio que os tambores devem ser re-significados e colocados lado a lado com os computadores como forma de expressão e difusão de discursos negros. E que seja tecida uma rede também virtual, capaz de prolongar e tornar permanente encontros como o Festival Nacional de Teatro Negro de Winston-Salem, seu Colóquio, nosso Fórum de Performance Negra brasileiro e quantos outros haja. Não que as tecnologias e as presenças virtuais substituam os encontros presenciais, como os microfones não substituem a voz. Entretanto tornam maior sua capacidade e alcance. Assim, que as novas tecnologias à disposição da humanidade também possam amplificar nossa capacidade de construir um mundo mais justo através do nosso teatro.

3.8.11

29/07/2011


Viagem para os eua.
A tristeza.
Minha tristeza.
Acordei as 2:40, 3:16, 3:54, 4:15 finalmente o despertador/celular tocou: 4:45. sono.
Levanto, tomo os remédios: selozok 25, naprix 5 e o do colesterol. Preparo o café... água no fogo, lavar garrafa térmica, colocar o pó no coador. tento abrir o computador para ver se tem alguma emergência no imeio. Lento. A água ferve. Pão com queijo. O interfone toca. Taxi chegou. Ainda não estou pronto. Vai demorar um pouco. Cristina acorda. Tomo banho frio me visto. Despedida triste triste. Saio. Taxi. Aeroporto.
O funcionário da American Airlines me tira da fila, leva para o escritório. Faz o chequim. Muda meu lugar. De Recife a Miami, janela, porta de emergência. Mais espaço para as pernas. Libera a bagagem de mão sem pesar. 15,5kg. Liberaria?

Cristina liga. Lembro q vi no computador uma página de horóscopo aberta. Câncer. Falo c ela.
Vou embarcar. Ela liga de novo. Leu o horóscopo.
Lembro q tenho perfume na mala. Volto, aviso no balcão. O funcionário n avisou ao senhor? Ele tinha tantas perguntas q deve ter esquecido. Nós temos a obrigação de lembrar aos passageiros.
Vou embarcar. Raio x. Tiro a carteira. Uma nota de 50. preciso trocar dólares. Volto. Troco 918 reais por 550 dólares. Lembro que esqueci 1000 dólares em casa.
Ligo pra Cris. E aí? Te mando, faço um depósito. Vamos ver. Deixa pra lá. Quando chegar eu vejo. Nos falamos.
Volto pro embarque. Entro. Café. Balas de canela.
Sento. Escrevo. A voz do voo convoca os passageiros.


30/07/2011

Em noviorque sentado no terminal 5 do jfkairport.
O terminal 7 só abre às 4h são 3.
passei 5 horas em miami – duas das quais numa sala da emigração. Sabia q o guichê 27 daria problema. Essas coisas, n sei porque n troquei de fila. As outras andavam até mais rápido. O cara olha pra mim, pergunta o q vim fazer nos eua. Passeio, férias, businesssss..... fui convidado para um festival de teatro. Mostro a carta. Tudo parece bem, foto, impressões digital. Venha comigo e, desde q estava na fila levantou pela primeira vez e pela primeira vez saiu de seu guichê 27 e me levou pra outra fila. Entregou meu passaporte a outro funcionário q me mandou passar. Mas meu passaporte está aí. Então fique na fila. Foi chamando e colocando os passaportes em pastas amarelas, azuis ou vermelhas. Pra uma dessas últimas foi o meu. Outra fila. Me acompanhem. Entramos numa sala totalmente olhos azuis. vi o filme.  Tensão. Uma criança chora sem parar. N escuto as chamadas dos nomes. Alguns são chamados, levantam, vão até um dos guichês. Saem. Aparentemente sem saber porque estavam ali nem porque saiam. E eu sem saber porque estou nos eua.
Saio, comer alguma coisa telefonar n dizer a cris q estive detido na sala de imigração ou emigração. Preocupar pra q? Falo c ela. N sem antes me embananar c o cartão de telefone. O rapaz da loja q vendeu me ajuda.
antes o voo de salvador para recife. Sono acabei de ler o livro de bárbara babi, q trabalhou em barba azul e dom quixote e pensei em dirigir senhorita julia c ela e lázaro. Chegamos a fazer uma leitura. N me conformo com as traduções de strindberg. Acho q ele deve ser melhor. Soubesse sueco.... bonito livro. De buscas procuras endesencontros. Tenho q falar c ela dar um retorno. Edição independente. Notas frias do corredor alado é o nome do livro. N vejo marca de patrocinador nem de programas governamentais de incentivo. Viva!!!

começo a ler Pepetela – O planalto e a estepe.
Escrevo mais um pouco o q vou falar. Eis o q vou fazer falar num seminário dentro de um festival nacional de teatro negro. Sobre teatro negro e novas tecnologias. Um texto frankenstein. Juntando meu assunto de agora – novas narrativas/novos atores – com meu assunto de antes: teatro negro. 

Decepcionei muita gente na secretaria. Parte do teatro baiano esperava q fosse uma gestão para o teatro. Para resolver o teatro baiano. $$$$$$$$$ para montagens. Nada de um pensamento de políticas q ajudem o setor a ser independente e sustentável. Pode ser? N pode? N deve continuar como está. Mas está sem público porque sem interesse, sem necessidade. Exercício de vaidade, ganha pão. N um serviço público. N um diálogo contemporâneo. E volto à minha questão atual novas narrativas convergência de produtos e processos. É o q vou falar no meu texto frankenstein.
Gostaria de falar em inglês como falo em português. Aí dá pra levar. A emoção q alguns assuntos despertam em mim ajuda. N sei como vai ser um texto escrito em português, lido e traduzido.... sei n. E pra isso tô aqui.
Depois de recife, pra miami.
Fotos, crianças no banco da frente. Meu lugar na janela da porta de emergência. Uma senhora no corredor. Cadeira vazia entre, cheia de mochila e travesseiros. Sono durmo. Leio escrevo, tiro fotos. Levanto almoço merendo vou ao banheiro passo fio dental escova e pasta nos dentes. Vou ao banheiro várias vezes pra levantar andar e mijar.
Horas de viagem. Pessoas como eu entraram em salvador, saíram em recife, voaram pra miami, circulam pelo mia miami international airport circulam pelo jfk em n york. Parece filme.
Cláudia leite vai fazer show em newark e boston. Toda a equipe faz parte desse contingente nômade. Vários outros. Família de pai mãe filho filha casais solitários. Viro uma esquina um deles. Podia ser um filme de perseguição ou de terror.
Janto um sanduíche no subway. Depois descubro um restaurante junto ao gate D38 onde vou embarcar, q tem ropa vieja – prato de carne q adoro mas o sanduíche tava gostoso.

Embarco para noviorque. Esperar mais 5 horas. O terminal 7 só abre às 4. são 3:45 vou rodar corredores e esteiras rolantes pegar de novo o air train e chegar la.
Rumo a washington em novo avião. depois, finalmente, um outro pra greensboro perto de winston-salem - carolina do norte.


E teve a segurança das duas entradas em salas de embarque: miami e ny... tira sapato cinto leptop carteira bota tudo em bandejas para o raio x torrar e passa por um aparelho q checa o corpo todo. Uma exposição quase total de cada um. Um país q vive acuado pelo terror. Pelo pânico da possível revanche a tudo q faz mundo afora.

O terminal 7 abriu a moça q atendia no balcão da united airlines era brasileira e me ajudou no chequim. Café: melão capuchino e cinamon twist tradicional. Espera.


01/08/2011

Winston-Salem north caroline eua – depois das 5 horas de ny, washington e um avião pequeno daqueles de 2 lugares de um lado e 1 do outro. E outro avião igual de washington pra greensboro.
No aeroporto Olasope Oyelaran nigeriano radicado nos eua, professor aposentado da universidade da nigéria e daqui – organizador do Colóquio: Black theatre and the critical canon: a call to the culture bearers, onde falo dia 5 sobre Teatro negro e novas tecnologias.
Ele me espera no aeroporto e dispensa o carro que ia me levar. Vamos tomar o breakfast e conversar. Sinto uma reponsabilidade muito grande de estar aqui. Único representante do brasil, já que Cobra e Evani Tavares não puderam vir. A expectativa sobre o papel do brasil é muito grande.
Suco capuccino e panquecas.
Hotel. Banho internet sono. E o telefone toca. Uma rádio local solicita uma entrevista. Em inglês? Topo. Amanhã.... domingo. Rio, primeira entrevista em inglês pra rádio. Em londres, pra zumbi, eu dei?
N durmo mais. Tenho q acabar de escrever minha fala. N escrevo. Tortura escrever.
Fome. Saio pra comer. Tudo é cenário de filme americano. Sem legenda. Tiro fotos. Restaurante italiano. Ligo pra casa antes. Cheguei. Salada e fetuccine a l'arrabiatta.

Volto pra casa.
Hotel.
Internet. Sono. Pepetela. A bela e a fera na televisão, em inglês. Sem legenda e sem dublagem. Durmo.

Acordo tarde no sábado. O café da manhã do hotel é terrível: ovos mexidos, bacon, um mingau branco sem gosto, bolinhos de batata fritos, n tem pão, ao invés, biscuits e uma rosca dura mais escura c gosto de canela, outra clara. Cream cheese, geleias, manteiga e mel. Bananas e laranjas. Suco plástico de laranja e de frutas vermelhas. E de maçã q n gosto. Muito doce. Chafé ou chá e leite...

volto pro quarto a rádio faz confusão. Vários ligam... vários horários. Finalmente chega o reporter e chama. Vou à recepção. Dois jovens negros. O entrevistador é ator e dramaturgo. Falamos sobre teatro e sobre projetos: os dele – ir para L.A. Fazer audição para hollywood. O último texto q está escrevendo sobre um músico q foi assassinado, supostamente por uma prostituta. Falo pra ele q é minha primeira entrevista em inglês pro rádio. Rimos. Gravamos, o outro filmou numa canon rebel t3, como a minha. Falamos sobre câmeras. Filmes, meus projetos, minha fala: teatro e novas tecnologias, explico a questão das redes sociais e suas dramaturgias, do tempo real e espaço virtual. Como o teatro pode aglomerar uma comunidade virtual e outra presencial, e compartilhar tempo e discurso. 
trilogiaRemix... é incrível. Vou fazer? Faz sentido? Como? Parte da minha vinda é uma fuga, um distanciamento, um olhar em perspectiva para o bando, para o vila, para mim e meus 40 anos de teatro. Como é q vai ser aqui? Como é q vai ser a volta?
Toda viagem é uma tentativa de volta. Pra algum lugar. Pra alguma coisa. E essa coisa é a nossa casa e nossa casa é um lugar simbólico q representa Eu mesmo. Q eu? Devo falar de mim eu quem. O jasão de müller.