6.8.11

O TEATRO DO BANDO E AS TECNOLOGIAS

Há 20 anos, na Bahia, Chica Carelli, outros artistas e eu criamos um grupo que se mantem ativo até hoje: o Bando de Teatro Olodum. Sou responsável pela maioria de suas encenações. Nelas temos perseguido a construção de uma dramaturgia que dê conta de nossas questões.
No início de nosso trabalho, adotamos a tradição oral como modelo. Nossas peças eram “escritas” oralmente. Eu propunha temas, provocava improvisações, “editava” as falas ao vivo, ia tirando coisas e colocando frases à medida que os atores repetiam a cena já selecionada para fazer parte do espetáculo. Montava esquematicamente um roteiro com a sequência das cenas, experimentava no próximo ensaio... As falas iam sendo construídas e memorizadas assim. Às vezes eu ou um dos atores escrevíamos e trazíamos propostas de diálogos. Eram experimentados. Íamos assim até que eu dava a forma final com a colaboração de Chica Carelli, que co dirige os espetáculos comigo e dirige os seus próprios.
Onovomundo - foto: Isabel Gouveia
Mas atores insistiam em montar uma “peça de verdade” – ou seja, escrita e publicada. E montamos WoyZeck, de Büchner – texto que dialogava com nossa dramaturgia e falava da classe trabalhadora: nós. Depois de WoyZeck, vieram outros criados oralmente que eram intercalados com clássicos da dramaturgia universal.
WoyZeck - foto: Isabel Gouveia
A montagem de textos como a Ópera de três vinténs ou Medeamaterial, para além do desejo de todo ator e encenador de poder mergulhar nesses monumentos, é um exercício e pesquisa para a criação de nossas próprias formas narrativas e uma atitude política de “pintar” de negro a dramaturgia universal.
Em 1995, fomos convidados a publicar nossas peças que tratavam da comunidade do Centro Histórico de Salvador, na Bahia: a Trilogia do Pelô. Tínhamos patrocínio para isso. E aí tivemos que definitivamente usar a tecnologia da escrita e da edição. Publicamos o livro. Depois disso todas as peças que criei em colaboração com o Bando foram escritas “de verdade”, à medida que eram criadas, e publicadas no programa do espetáculo.
Medeamaterial - foto: Isabel Gouveia
No início, quase não utilizávamos cenários ou iluminação para poder circular facilmente pelos subúrbios, escolas, quadras de centros comunitários e também em teatros, em busca de nosso público. Além do quê, não tínhamos recursos mesmo para isso. Em WoyZeck, como “texto de verdade”, a necessidade de cenário e iluminação era inerente à narrativa. A partir de sua montagem, tivemos grandes colaboradores nas duas áreas.
Finalmente, o som. Sempre usamos a música ao vivo. Inicialmente baseada no binômio canto/percussão – como nos terreiros de candomblé e nos tradicionais desfiles de carnaval dos blocos afro. Depois começamos a utilizar outros ritmos e instrumentos. Isso nos levou à uma pesquisa de amplificação sonora que teve seu mais sofisticado projeto em Sonho de uma noite de verão.
Sonho de uma noite de verão - foto: João Meirelles
Na montagem do sonho shakespeareano, queríamos falar do amor e nos apropriar do texto, em sua íntegra, mas de nossa forma: em nossa língua e linguagem. Transformar o midisummer britânico no verão baiano, era colocar os eventos durante nosso carnaval, a maior festa negra pública brasileira.
Descobrimos os ritmos do carnaval baiano correspondentes aos dos versos da peça e à natureza de cada personagem. Assim, os atores falam acompanhados de tambores, guitarra, baixo elétrico e cavaquinho que tocam ijexá, samba reggae, galope, arrocha, samba ou rap: o rítmo de cada um. Foi necessário um sofisticado desenho de som para que as vozes dos atores sejam ouvidas acompanhadas pelos tambores e não soem falsas – como dublagem – com a fonte sonora espacialmente distante do corpo emissor do som. E mais: que a alternância entre som amplificado e som acústico não seja perceptível aos ouvidos da platéia.
O uso da tecnologia de som, foi absolutamente necessário para a realização do objetivo estético da montagem.
Assim, levados por necessidades narrativas específicas, chegamos ao uso das tecnologias tradicionais do palco: escrita, cenário, iluminação, sonorização.

TRÊS EXPERIÊNCIAS COM OUTRAS TECNOLOGIAS E NOVAS NARRATIVAS
Bença - foto: João Meirelles
Bença: o tempo passado e o tempo presente.
O trabalho comemorativo dos 20 anos do grupo chama-se BENÇA. É um tributo à tradição, ao poder do tempo e aos mais velhos. Mas é um espetáculo/instalação que usa a tecnologia como parceira dos atores em cena.
Experimentamos algumas ações na internet. Colocamos trechos de ensaios gravados, fotos, textos e outras informações no Youtube, em sites, nas redes sociais e no blog do grupo.
Provocamos algumas discussões sobre os temas da peça e inserimos as formas narrativas geradas pelos fragmentos dessas discussões na peça. O próprio nome BENÇA foi (des)construído num debate no orkut.
Depoimentos dos mais velhos – líderes de comunidades afro brasileiras, detentores dos saberes de seus coletivos – foram registrados em vídeo: são o tempo passado, falando para o presente. Tanto no assunto como no modo. O que eles dizem já foi dito, gravado, editado e é reproduzido por um sistema de três projetores comandados por um programa que sincroniza as projeções, a ação ao vivo e as imagens captadas por câmeras operadas pelos próprios atores em cena. Estes, e suas vozes, presentes, dialogam com aquele passado.
Temos portanto, no palco, graças a tecnologias da computação e do audiovisual, o tema do espetáculo explicitado por uma dramaturgia específica, que une diferentes formas narrativas – diálogos, poemas, depoimentos, canções, percussão, coreografia, audiovisual – para falar sobre o papel do tempo e da memória na cultura negra e na construção do futuro.
trilogiaRemix.DOC#aquartapeça - foto: Tiago Lima
trilogiaRemix.DOC#aquartapeça: o teatro documentário – a inclusão do outro real.
Este ano de 2011 marca 20 anos da criação de Essa é nossa praia – a primeira peça da Trilogia do Pelô – e resolvemos refletir sobre o tempo transcorrido tanto para o grupo e suas três peças quanto para a comunidade do Pelourinho, microcosmo sobre o qual nos debruçamos para tratar do tema das desigualdades sociais e geração de violência: racial, de gênero, política e outras.
Pelourinho é o nome de um instrumento/lugar de tortura usado para punir marginais, bandidos e escravos e nomeia, tradicionalmente, um largo de Salvador, onde esteve situado durante os anos do Brasil colônia. Este largo, como vários outros logradores baianos, tem outro nome oficial: o do poeta indianista José de Alencar.
Ironicamente, depois da reforma, promovida pelo governo do Estado, que expulsou 90% da população local para transformar o centro histórico de Salvador num shopping turístico, o nome Pelourinho foi tomado para designar genericamente todo o centro histórico, como uma dupla marca.
O Bando de Teatro Olodum foi criado no ano em que foi eleito aquele governo que promoveu a reforma. A primeira peça montada pelo recém-criado coletivo era para ser apenas o resultado da oficina que gerou o grupo e um estudo de criação de personagens, a partir de representantes da população local (ensaiávamos na Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus). Depois montamos mais duas, formando a Trilogia do Pelô (apelido da área). As três são diferentes momentos do processo de violência cultural que marcou aquela comunidade: Essa é nossa praia, antes da reforma, é um painel humano que mostra o seu cotidiano; Ó paí, ó!, o início da reforma e o extermínio de crianças pela polícia; e, por fim, Bai bai Pelô trata do destino daqueles personagens depois da conclusão das primeiras etapas da reforma, que ainda não acabou.
O projeto que estamos desenvolvendo agora: trilogiaRemix.DOC#aquartapeça, começa a ser construído, de forma colaborativa mais aberta. Além dos artistas que fazem parte do grupo, temos tido, no processo, a participação de fotógrafos, roteiristas, músicos, cineastas e também de moradores do Centro Histórico de Salvador.
Os ensaios estão sendo acompanhados em livestream. Aberto portanto à interação e ao diálogo com internautas. Assim, mobilizamos uma comunidade bastante significativa e interessada em debater questões raciais, de gênero, de exclusão, de violência, a partir do teatro. Mas que, além disso, também que deseja estar em contato com o próprio grupo e, ainda que virtualmente, ser parte dele ou de seu projeto.
Estamos construindo uma narrativa para esse espetáculo, que permita a presença física ou virtual de pessoas ligadas ao Pelourinho e que possam falar sobre ele, mas também sobre o espetáculo. Criticá-lo ao vivo. Estar nele, ser parte dele. Então vai ser construída a possibilidade de coloca-lo em tempo real na internet e sendo projetado em algum lugar no Pelourinho para que as pessoas de lá possam se ver no teatro, através da representação dos atores, mas também como atores de sua própria história, intervindo pessoalmente na narrativa da peça.

Cabaré da RRRRRaça - foto: João Meirelles
Cabaré da rrrrraça: uma experiência de 14 anos colocada online.
Cabaré da rrrrraça é um espetáculo sobre racismo e sobre ser negro. Está em cartaz há 14 anos (estreou em agosto de 1997) e sempre volta a cartaz com grande sucesso na Bahia ou em excursões. Pessoas já viram cinco, dez ou mais vezes. Para rever ou para serem surpreendidos pelas atualizações do texto, alterações no figurino ou substituição de algum ator que deixa a produção.
Na última temporada resolvemos colocar o espetáculo em livestream, como um teste. Planejamos transforma-lo num programa semanal de televisão, fechando um círculo, já que é inspirado em talk shows televisivos. E, como pretendemos que a peça tenha a cada semana um tema inédito inserido, e transmitido ao vivo, queríamos testar como funcionaria.
A primeira transmissão era apenas um teste e duraria uns 15 minutos, mas um dos atores colocou o link da transmissão no facebook alguns minutos antes de entrar em cena. Logo, 17 pessoas estavam online, esperando começar a transmissão. E no chat discutiam entre si a peça, dialogavam com ela e falavam comigo e com os técnicos comentando, agradecendo, orientando e solicitando coisas como aproximação da câmera, ou melhoria no som. Quando dissemos que era só um teste e que logo encerraríamos a transmissão, começaram os pedidos para continuarmos. Além dos “fãs” locais, eram brasileiros negros que estavam na Irlanda, Itália e vários outros lugares, sem a possibilidade de estar presentes fisicamente, e queriam muito ver a peça. Seja porque já tinham visto e queriam rever, seja porque já tinham ouvido falar. Então deixamos até o final. E depois deletamos o arquivo. Teatro tem que ser ao vivo.

Esta experiência nos deu a dimensão da capacidade do teatro e da internet de mobilizar pessoas para discutir algo que lhes concerne, para se divertir, para estar junto com outras pessoas compartilhando a mesma coisa.
Mas para isso, é preciso repensar e reinventar narrativas. Há algum tempo temos trabalhado na construção de uma dramaturgia que dialogue com as novas mídias e suportes e que trabalhe com a dramaturgia das redes sociais. Venho investigando a tempos os roteiros e discursos fragmentados que surgem das discussões nas redes. Vejo aí um rico material dramatúrgico, mas que depende de atores aptos a dialogar no palco com as novas tecnologias, portanto temos que repensar também os processos de formação.
Creio que o diálogo entre tradição e tecnologia seja um dos caminhos – muitos existem – para a construção de um teatro negro. Creio que os tambores devem ser re-significados e colocados lado a lado com os computadores como forma de expressão e difusão de discursos negros. E que seja tecida uma rede também virtual, capaz de prolongar e tornar permanente encontros como o Festival Nacional de Teatro Negro de Winston-Salem, seu Colóquio, nosso Fórum de Performance Negra brasileiro e quantos outros haja. Não que as tecnologias e as presenças virtuais substituam os encontros presenciais, como os microfones não substituem a voz. Entretanto tornam maior sua capacidade e alcance. Assim, que as novas tecnologias à disposição da humanidade também possam amplificar nossa capacidade de construir um mundo mais justo através do nosso teatro.

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