Em 1976 fiz uma exposição de desenhos no ICBA, intitulada À nous la liberté.
Escrevi esse texto como base para o release de divulgação.
Escrevi esse texto como base para o release de divulgação.
abertura da exposição |
1.
Eu nasci há muito tempo, não sei bem onde. Sei que meus desenhos mais antigos, que tenho guardados, foram feitos aos cinco anos. Provavelmente comecei bem antes. Antes mesmo de nascer. Comecei brincando e brincando continuei. Experimentei muito e de repente aprendi a dar sentido a essa brincadeira. A brincar outra vez com a mesma seriedade dos cinco anos, quando brincar era a única coisa realmente importante. E quando isso aconteceu foi o princípio do meu reencontro. Passei dois anos trancado num útero refazendo a vida e, em 1975, finalmente saí do ovo. Rompi a casca e me atirei ao mundo pra mostrar a minha brincadeira: brincar com o mundo.
“Venha rever a cidade que a festa continua. Se embriague no meu sangue”1 – Assim foram convidados e assim compareceram e assim se embriagaram. Mostrei tudo. As entranhas. Meu lixo ocidental.
- Uso o lixo pra fazer o meu trabalho. Vomito tudo o que como: o café da manhã, o dia a dia, e tudo que vejo na rua nas minhas andanças sem pressa.
- Uso o que mais me convém pra expressar o que quero. Sou um pintor sem estilo.
- Acho que as coisas devem ser todas misturadas.
- Se arte é vida, o espectador deve estar no centro.
- “Pedaços de objetos velhos, recortes de jornais e outros materiais do gênero constituem os elementos que Marcio utilizou em seus trabalhos de colagem e arte ambiental.”
- “Marcio, que pinta, desenha, faz ambientações, escreve poesia, cria coreografias e encenações é, enfim, o que um artista hoje deve ser.”
- “Marcio tem muitas ideias, sendo sua qualidade maior a fidelidade aos seus princípios, que impede que se perca em floreios inúteis.”2
“Venha rever a cidade que a festa continua...” – Assim foram convidados e assim compareceram. “Um bruxo cigano contou...”
Desprendeu-se outro módulo da nave e parti por outra estrada que me levou a outros mares. Ao palco, à passarela, à tela.
E o espetáculo continuou.
Eu não trabalho em termos de quadro porque quadro é uma coisa parada e sou muito irrequieto. Trabalho em termos de espetáculo mesmo. Meu trabalho é uma fração de tempo entre um antes e um depois. É um momento da história que não começa nem acaba ali. Mas a partir desse momento pode-se descobrir o que virá e o que passou. Por isso me interesso muito por história em quadrinhos que é uma forma de fazer teatro sem atores e cinema sem dinheiro. Que é uma linguagem única, própria, forte e brilhante de brincar e contar histórias.
Recolhi-me outra vez e a partir de história em quadrinhos, publicidade e o art nouveau, descobri o traço. A linha.
Agora, com uma linha pura, limpa sobre fundo branco, um certo toque de humor, um risinho entre dentes, conto histórias. Histórias de terror tecnológico. Este terror feérico que não tem nada a ver com a morbidez do gótico. Alguma coisa como a angústia deste século, alegre, divertida, colorida. Com o peito de plástico, a boca de acrílico e os braços de neon nos atrai, encanta e amedronta.
Um dia, no hemisfério norte da América, declararam independência. Independentes, ditaram sonhos, cresceram medos e resolvi comemorar 200 anos. Descobri então, festejando, que seus símbolos não são seus, são do mundo. São meus. Escrevi: À nous la liberté – desenhos para colorir. Alguns desenhos publicitários que contam como nos oferecem situações ideais, como nos mentem, como os objetos declararam independência e controlam os destinos do homem. E vou mostrar isso com coca cola e cachorro quente. E depois, quando estiver entupido de coca cola, vou seguir viagem. Pra onde, não sei. Sem compromissos. Por sete mares, sem navio. Talvez vá pra hollywood plantar um pé de araçá.
2.
À nous la liberté – desenhos para colorir
Neste ano em que se comemora o bicentenário da independência dos Estados Unidos da América, tive uma ideia – Vamos festejar. Comecei a contar História, a história da independência dos objetos, criados inicialmente para servir ao homem, mas que, com o correr do tempo, ganharam dimensões inesperadas e começaram a comandar o espetáculo.
Organizei meu caos. Apaixonei-me pela linha pura sobre grandes espaços em branco – para colorir – e comecei a reinventar a publicidade oferecendo uma situação ridícula contra cada situação ideal que me apresentam no vídeo, nas revistas coloridíssimas, nos out door. Deixei a cor aos cuidados do cliente que tem livre arbítrio mental para usar a que melhor lhe convier.
Abandonei a tragédia e ofereço a tragicomédia. Rindo é mais fácil engolir as coisas. Rindo e cantando. E sorrio entre dentes enquanto me debruço no papel para fazer os meus rabiscos de terror tecnológico. Rabiscos muito bem feitos, por sinal.
Escolhi a língua inglesa para dar título aos desenhos pelo que ela tem de onomatopéico, de universal, de tecnológico, de hollywoodiano. De óbvio: por que falar outra língua, se inglês é a língua dos objetos? Eles falam off – on – stop – start – etc. Então por que falar outra língua, quando a corrente é esta? Depois, nos USA se fala inglês, sabia? E eles comemoram 200 anos de independência, sabia?
Essa história dos objetos não começa nem acaba aqui, nos desenhos. Não sei onde começaram nem onde vão acabar. Talvez ainda faça uma centena mais, talvez acabe aí. Talvez eu pudesse contar essa história com somente um, mas preferi fazer esta série que será vista, ou não. Não precisa ser vista, porque todo mundo vê TV ou pelo menos já viu uma revista ou um outdoor. E basta ter um pouco de cabeça pra saber que tudo que se diz é mentira, que as situações ideais são ridículas e que os objetos não vão salvar ninguém. Muito pelo contrário. É isto que digo nesta exposição. Gargalhando.
1Texto do convite da primeira exposição individual: Um bruxo cigano me contou. (1975, foyer do Teatro Castro Alves, Salvador/BA).
2Citações de artigos de jornal, quando da exposição mencionada.
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