28.8.11

OSBA – 5º ANIVERSÁRIO - 1987

No quinto aniversário da OSBA - Orquestra Sinfônica da Bahia -  escrevi este texto para o programa do concerto comemorativo. 
Agora, a Osba se debate ante o dilema: ser publicizada ou não. Li uma entrevista com o novo diretor, Carlos Prazeres, onde ele dizia que 10% dos músicos da orquestra trabalham contra. Por que sempre os que não querem esperneiam tanto? 
Tive um debate com eles sobre esta questão. E pude perceber a presença desses 10%... No fim das contas, quando os poucos já não tinham mais argumentos contra a administração da OSBA passar para uma oscip, quando tudo estava claro e todos os direitos e estabilidade garantidos, um deles saiu com essa: sou contra a publicização por ideologia. E ponto. ideologia sem argumentos pra mim é fundamentalismo. Longa vida para a OSBA.
De qualquer forma, esse texto de aniversário, é uma celebração da beleza que uma orquestra produz.

Carlos Prazeres, diretor artístico, e sua OSBA
A primeira vez que assisti a “Ensaio de Orquestra” de Fellini, pensei: “que bela metáfora sobre o funcionamento do homem”.

Eu não conhecia de perto uma orquestra. Somente me sentava numa poltrona e assistia a concertos, ou ouvia gravações.

Depois, comecei a conviver com o cotidiano, com os ensaios, com os problemas, com os músicos de uma orquestra. Descobri que o “Ensaio” cinematográfico é mais que uma metáfora, é um documentário, um retrato de um grupo de pessoas muito especial.

O universo de uma orquestra, o universo interno, que o público desconhece, é como o filme: uma orquestra não é um todo, são partes, partes desconexas, partículas distintas como gotas de óleo boiando numa poça d’água. Uma orquestra não é um conjunto de músicos, é cada músico e seu instrumento, com quem ele desenvolve uma relação única, íntima, carnal, feita de contato, de aconchego, de identificação, de mimese. Um instrumentista é um pouco seu instrumento, é quase ele, são quase uma coisa só. Um violinista é quase seu violino, assim como uma harpista é quase sua harpa.

A diferença entre os instrumentistas e seus instrumentos está na afinação. É mais fácil que coisas distintas como uma tuba e um flautim, um oboé e um contrabaixo, consigam o mesmo tom, a mesma nota, do que os instrumentistas entre si. Todas as questões pessoais, estéticas, sindicais, econômicas, políticas, metafísicas, os impede - ou pelo menos atrapalham muito - de chegarem juntos ao mesmo diapasão.

E assim, desarmônicos, dissonantes, se agrupam não num todo, mas numa espécie de monstro, de animal antidiluviano a um passo da extinção.

Correndo sempre o risco de que uma enorme bola de ferro comece a demolição da sala de ensaios e seja instaurado o caos explícito.

Mas existe a música.

Quando os músicos de uma orquestra sentam-se em frente às suas estantes, quando, juntos dão início ao concerto, faz-se a mágica, faz-se a luz. Todas as gotas de óleo se juntam e criam arco-íris sobre a água, o monstro antidiluviano se transforma num enorme barco e qualquer ameaça de extinção se acaba, porque só uma orquestra contém a possibilidade desta mágica.

Então temos certeza de que existe mais do que aqui-agora, temos certeza de que o mundo é maior do que nosso quintal, de que é possível alterar a ordem errada das coisas, de que esta possibilidade está na mão de um instrumentista, de um homem comum que apenas aprendeu seu ofício e o executa bem, buscando nada mais que ser um homem que tem um ofício e o executa bem e assim está próximo e unido a um outro homem que aprendeu seu ofício e o executa bem.

Existe a música. E, por isso, existe a mágica. Quando uma orquestra começa a tocar, temos a certeza de que o homem um dia roubou o fogo do céu, e tudo é possível.

Um comentário:

  1. Fiquei muito feliz, por diversos motivos, em ter lido esse texto. Devo agradecer então, do alto da minha mais irrelevante existência pra você. Muito obrigada. É de uma lucidez imensamente necessária.

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